quinta-feira, 27 de junho de 2019

Uma mulher sem futuro compra as próprias flores e se abriga no agora

  A mulher com o coração partido, dentro da camiseta com uma frase empoderada, tem as unhas pintadas de esmalte vermelho, segura a bacia azul com uma dúzia de mexericas e espera, sem pressa, a sua vez na fila do supermercado. Cantarola uma letra antiga que sempre a reencontra e se imagina fumando um cigarro ou pedindo uma bebida em um filme francês, que há muito não assiste.
  A mulher com o coração partido resiste, agarrada à sua promessa doce da felicidade infantil. Coloca suas esperanças na sacola de tecido e sobe, sólida, a rua, porque não quer se liquefazer hoje. A música do seu silêncio é acompanhada pelo som das moedas do troco, tilintando no bolso traseiro da calça larga.  A mulher de esmalte vermelho e sonho de amor rompido sabe que há dias infelizes que precisam ser acolhidos com mexerica e uma saudade generosa de si.

  A mulher que não deu certo coloca a coleira no cão e se entrega a ele para ser levada  para passear. Soma as multas que precisa pagar, esquece de levar o carro para abastecer e se atrasa no dia seguinte, porque nunca se acostuma com o relógio de parede, cujos ponteiros não fazem anúncio sonoro do quanto correm.
  A mulher que não deu certo não desiste das braçadas no mar de dúvidas, porque elas é que a levam para a sua ilha de perdão e compreensão de si mesma. A mulher que não deu certo ouve, todos os dias, uma única conversa ao telefone que gritava:
- Você não sabe o que quer!
  A mulher que não deu certo não se ofendeu com a verdade da qual não foge mais; mas se magoou muito com o desconhecimento do interlocutor.
- Sabe, sua ofensa não me ofende.

   A mulher dividida entre o desejo de um novo país e o começo de uma família sobe os degraus de uma igreja e não faz pedido de solução para o seu caso, porque sabe que a escolha é o regalo recente, e ainda restrito, mais importante do seu gênero.
  A mulher dividida entre o cabelo acima dos ombros ou abaixo das escápulas analisa, com cuidado, as fotos antigas por muitas semanas, mas escolhe os limites da tesoura em um segundo de decisão flamejante na cadeira do cabeleireiro.
  A mulher dividida entre Marianne e Elinor, de Austen, num dia acredita, sem escudo, e no outro, acorda armada até os dentes.
  A mulher dividida entre o que foi e o que ainda não é, escolhe o que é possível ser e se veste inteira deste agora. Depois, coloca no banco do carona o que não sabe se já perdeu ou o que ainda não a encontrou e leva ambos para passear.

  A mulher de olhar perdido, durante o almoço, com lentes que já perderam a validade e  nódoas amarelecidas sobre as paisagens, descansa os olhos enquanto contempla o céu, quando chega em casa no começo da noite. Põe os seus olhos na altura do infinito e enxerga com lucidez a vastidão que é o mundo e as suas imagens corrompidas pela rotina.
  A mulher de olhar perdido no espelho, reflete sobre o que olhares, demasiado estimulados, dos outros não puderam encontrar nas suas entrelinhas.
 A mulher de olhos que borram os limites entre cada coisa, enxerga melhor do que qualquer um: que nada existe separado, que a solidão também se relaciona e que nada começa e termina sem deixar rastros.

   A mulher perdida do próprio itinerário não espera nenhum mensageiro com as cartas. A mulher sem endereço, escreve as próprias perguntas, as respostas, os sonetos, os milagres, as histórias, os pedidos e as promessas que gostaria de ler.
   A mulher desencontrada do próprio caminho, cujas ilusões estão despedaçadas no chão do apartamento depois de um grito, recolhe os cacos e coloca-os na gaveta, para um dia restaurá-las.
  A mulher cujo umbigo não foi enterrado em quintal algum chama de casa a passagem e de passagem as casas, cujas paredes pintou antes de morar.

  A mulher em cólera pela injustiça prolongada de uma prisão absurda, apazigua seus terrores com poesia e forra a sua cama de sonos intranquilos com alguma música que a liberte da normose epidêmica.
  A mulher em cólera pela violência desmedida contra os seus, as suas, os desconhecidos aos quais também sabe que pertence, medita dia sim e dia não e roga pela intranquilidade justa no lugar da paz com medo. 
  A mulher em cólera pela dor que não sentiu, mas reconhece que também é sua, acende uma vela, um incenso, um abajur ou uma alma  e espera que as luzes se espalhem, muito antes antes da violência.

  A mulher sem um futuro não se limita ao singular de um tempo distante. A mulher sem um futuro brilha na pluralidade ilimitada que também pode ser a vida.
  A mulher sem futuro não espera nada, compra as próprias flores e se abriga neste maravilhoso e perturbador agora.
  A mulher sem futuro é cheia de presente e distribui coragens, enquanto tenta desvendar a duração de um amor que não sabe se, numa noite dessas, chega ou se já partiu, enquanto ela tomava banho. A mulher sem futuro rejeita as ofertas que não cabem os seus muitos e propõe liberdades que abarquem todos. A mulher sem futuro é a única próspera no mundo. Não há ofensa em não saber.



Nenhum comentário: