quinta-feira, 11 de julho de 2019

Mesmo se o amor faltar num dia, noutro ele chegará

   Pode esperar na calçada cheia de latas de lixo, às duas da manhã, ou na sacada da cobertura do prédio novo no Centro, às oito da noite, mas ele demora ou passa discreto, sem acenar. Não é visita de hora marcada.
  O amor chega descansado e contente, faminto e magoado, novo ou de segunda mão, vindo de um brechó da parte baixa da cidade. O amor chega veloz ou muito lento. Chega adiantado para o compromisso ou atrasado para a entrega, o amor não chega na hora; o amor não usa relógio.
  O amor chega barulhento, num pacote de biscoito polvilho e vem também silencioso, numa meditação budista. O amor tem as vozes que os ouvidos não conhecem.

   Pode aparecer exposto numa gôndola bagunçada do supermercado e na estante da biblioteca metodicamente enfileirada; o amor desorganiza e ajuda a inventar outros caminhos. O amor distrai e ensina. Solicita e oferece tudo o que tem, o amor não calcula unidades.
  O amor chega numa avalanche no Chile, o amor escorre por um friso na mesa e se quebra, um pouco, quando chega ao chão. O amor escapa, aparentemente, ileso do primeiro e um pouco quebrado do segundo. Mas nunca se esquece da avalanche nem da queda.
  O amor come sushi com melado, macarrão com ovo e pão com maionese. O amor não é gourmet, o amor tem muita fome.
  O amor pede uma música para o cantor no bar, sem nem saber o nome da canção, o amor cantarola um pedaço da letra, faz os instrumentos com o estalar dos dedos; ele não tem vergonha.

  O amor chega numa sacola sustentável, sem plástico, free bisfenol. O amor salva da poluição, do desmatamento, do efeito estufa, da chuva ácida, dos três mil agrotóxicos. O amor gosta de saúde, o amor quer viver infinitamente.
  Mas se o amor se desilude, quer intercâmbio na China, um curso de ayurveda num ashram na Índia, quer casa da melhor amiga, sumir no mundo. O amor só quer ir embora e mergulhar na tristeza, da qual sairá sem nem saber nadar.
  O amor detesta roteiros, o amor improvisa, se impõe, surpreende; o amor eterniza, mesmo se abandona; o amor esquece, mesmo se é magoado, o amor perdoa até quando o amor nunca mais fala manso e gentil; o amor às vezes dura muito só cultivando lembranças e espera.

  O amor vai ao cinema na última sessão de quarta-feira, o amor aluga quartos, bagunça camas, o amor às vezes só quer dividir chuveiro, cobertor e panela de brigadeiro. O amor quase nunca convida, o amor arrasta, convoca, o amor passa aí em cinco minutos, o amor faz as malas em três.
  O amor chega na taça de vinho, na noite de sexta, e na garrafa com água gelada depois de ter corrido onze quilômetros.
  O amor pousa com as asas de uma borboleta ou com as antenas de uma barata. O amor chega no escapulário de um santo no qual não se tem fé, mas muita devoção nas mãos que o trazem, religiosas e crentes.
  O amor chega numa marchinha de Carnaval, na marcha nupcial, na música clássica do carro que vende melancias.

  O amor corta e pinta o cabelo para parecer mais atraente, mas o amor seduz quando não se esforça. O amor emagrece, faz ginástica, clareia os dentes, coloca lentes e é mais bonito quando acorda e está um pouco gripado.
 O amor traça seu biotipo, identifica se o tom de pele é quente ou frio, compra roupas e maquiagem, mas é mais bonito pelo que lê, fala e faz quando ninguém mais vê. O amor conquista pelo seu tratamento ao garçom, à mãe e aos sobrinhos que não são dele.
 O amor suaviza, mas o amor também acentua texturas, cores; o amor é escandaloso e sereno, livre e dominador, o amor se contenta e sempre quer mais amor.

  O amor chega no altar, mas também no chão da fábrica. O amor chega em balde de gelo com espumante e duas metades de copos de café solúvel.
  O amor chega em contrato e em  promessa nunca revelada em voz alta. O amor encontra o apagador e ajuda a iluminar o caminho, até há bem pouco, muito escuro. O amor oferece a mão para chegar ao lado desejado, ao encontro do outro, ao destino do qual, nem sempre, ele fará parte.
  O amor produz calafrios, calores, perturbações e grandes contentamentos; o amor não agride, não ofende, não quer destruir o objeto do seu afeto; o amor não sabe onde começa e termina os seus sentimentos; só sente. 
  O amor pousa tal qual a mosca na sopa; incomoda, faz as mãos abanarem o vento e depois acostumarem-se, postas no colo, conformadas, desistentes. Continua-se a sopa, divide-a com a mosca.

  O amor cavalga alucinado e também caminha tranquilo, passeando, querendo ser paisagem.
  O amor é um trabalhador esforçado e boêmio charmoso. O amor é poesia dos livros e narrativa do filho à mesa de jantar, sobre o seu dia. O amor é inspiração para uma pintura cubista do Pablo e também para o cobrador de ônibus levantar antes das cinco da manhã, com os dez graus na cidade.
  O amor é fuga da vida cotidiana e enfrentamento das adversidades. O amor fica e vai embora; o amor é sem querer e também escolha.
  O amor chega num bloco de notas, em cima da mesa, com um recado dentro há semanas. O amor faz chorar de ternura numa segunda-feira.
  O amor viaja em uma poltrona emperrada, com a luz quebrada, o choro da criança, o consolo exausto da mãe, uma jovem impaciente pedindo silêncio e o afeto de desconhecidos que se revezam em distrair a criança e descansar a mãe.
  O amor não desce sempre na rodoviária no tempo estimado, mas ele vem. O amor chega, ele sempre chegará. O que de melhor o amor faz é viajar. O amor é chegada e partida. Mas não ficar também é coisa do amor.


Nenhum comentário: