O amor chega descansado e contente, faminto e magoado, novo ou de segunda mão, vindo de um brechó da parte baixa da cidade. O amor chega veloz ou muito lento. Chega adiantado para o compromisso ou atrasado para a entrega, o amor não chega na hora; o amor não usa relógio.
O amor chega barulhento, num pacote de biscoito polvilho e vem também silencioso, numa meditação budista. O amor tem as vozes que os ouvidos não conhecem.
Pode aparecer exposto numa gôndola bagunçada do supermercado e na estante da biblioteca metodicamente enfileirada; o amor desorganiza e ajuda a inventar outros caminhos. O amor distrai e ensina. Solicita e oferece tudo o que tem, o amor não calcula unidades.
O amor chega numa avalanche no Chile, o amor escorre por um friso na mesa e se quebra, um pouco, quando chega ao chão. O amor escapa, aparentemente, ileso do primeiro e um pouco quebrado do segundo. Mas nunca se esquece da avalanche nem da queda.
O amor come sushi com melado, macarrão com ovo e pão com maionese. O amor não é gourmet, o amor tem muita fome.
O amor pede uma música para o cantor no bar, sem nem saber o nome da canção, o amor cantarola um pedaço da letra, faz os instrumentos com o estalar dos dedos; ele não tem vergonha.
O amor chega numa sacola sustentável, sem plástico, free bisfenol. O amor salva da poluição, do desmatamento, do efeito estufa, da chuva ácida, dos três mil agrotóxicos. O amor gosta de saúde, o amor quer viver infinitamente.
Mas se o amor se desilude, quer intercâmbio na China, um curso de ayurveda num ashram na Índia, quer casa da melhor amiga, sumir no mundo. O amor só quer ir embora e mergulhar na tristeza, da qual sairá sem nem saber nadar.
O amor detesta roteiros, o amor improvisa, se impõe, surpreende; o amor eterniza, mesmo se abandona; o amor esquece, mesmo se é magoado, o amor perdoa até quando o amor nunca mais fala manso e gentil; o amor às vezes dura muito só cultivando lembranças e espera.
O amor vai ao cinema na última sessão de quarta-feira, o amor aluga quartos, bagunça camas, o amor às vezes só quer dividir chuveiro, cobertor e panela de brigadeiro. O amor quase nunca convida, o amor arrasta, convoca, o amor passa aí em cinco minutos, o amor faz as malas em três.
O amor chega na taça de vinho, na noite de sexta, e na garrafa com água gelada depois de ter corrido onze quilômetros.
O amor pousa com as asas de uma borboleta ou com as antenas de uma barata. O amor chega no escapulário de um santo no qual não se tem fé, mas muita devoção nas mãos que o trazem, religiosas e crentes.
O amor chega numa marchinha de Carnaval, na marcha nupcial, na música clássica do carro que vende melancias.
O amor corta e pinta o cabelo para parecer mais atraente, mas o amor seduz quando não se esforça. O amor emagrece, faz ginástica, clareia os dentes, coloca lentes e é mais bonito quando acorda e está um pouco gripado.
O amor traça seu biotipo, identifica se o tom de pele é quente ou frio, compra roupas e maquiagem, mas é mais bonito pelo que lê, fala e faz quando ninguém mais vê. O amor conquista pelo seu tratamento ao garçom, à mãe e aos sobrinhos que não são dele.
O amor suaviza, mas o amor também acentua texturas, cores; o amor é escandaloso e sereno, livre e dominador, o amor se contenta e sempre quer mais amor.
O amor chega no altar, mas também no chão da fábrica. O amor chega em balde de gelo com espumante e duas metades de copos de café solúvel.
O amor chega em contrato e em promessa nunca revelada em voz alta. O amor encontra o apagador e ajuda a iluminar o caminho, até há bem pouco, muito escuro. O amor oferece a mão para chegar ao lado desejado, ao encontro do outro, ao destino do qual, nem sempre, ele fará parte.
O amor produz calafrios, calores, perturbações e grandes contentamentos; o amor não agride, não ofende, não quer destruir o objeto do seu afeto; o amor não sabe onde começa e termina os seus sentimentos; só sente.
O amor pousa tal qual a mosca na sopa; incomoda, faz as mãos abanarem o vento e depois acostumarem-se, postas no colo, conformadas, desistentes. Continua-se a sopa, divide-a com a mosca.
O amor cavalga alucinado e também caminha tranquilo, passeando, querendo ser paisagem.
O amor é um trabalhador esforçado e boêmio charmoso. O amor é poesia dos livros e narrativa do filho à mesa de jantar, sobre o seu dia. O amor é inspiração para uma pintura cubista do Pablo e também para o cobrador de ônibus levantar antes das cinco da manhã, com os dez graus na cidade.
O amor é fuga da vida cotidiana e enfrentamento das adversidades. O amor fica e vai embora; o amor é sem querer e também escolha.
O amor chega num bloco de notas, em cima da mesa, com um recado dentro há semanas. O amor faz chorar de ternura numa segunda-feira.
O amor viaja em uma poltrona emperrada, com a luz quebrada, o choro da criança, o consolo exausto da mãe, uma jovem impaciente pedindo silêncio e o afeto de desconhecidos que se revezam em distrair a criança e descansar a mãe.
O amor não desce sempre na rodoviária no tempo estimado, mas ele vem. O amor chega, ele sempre chegará. O que de melhor o amor faz é viajar. O amor é chegada e partida. Mas não ficar também é coisa do amor.
Nenhum comentário:
Postar um comentário