segunda-feira, 29 de julho de 2019

A casa para qual retorno nunca esteve vazia

  É quase domingo quando eu sonho com eles. O sábado que termina pareceu um recorte doloroso do caminho sem volta que é adultescer: desejar amor no piso gelado, lavar a louça do almoço, mentir para não magoar, fazer a lista de compras e procrastinar a incerteza do desejo.
  É quase domingo quando as mãos deles me seguram, a quentura deles acolhe o meu abandono, as faces sorridentes deles me devolvem a alegria da minha. Uma ventura noturna rápida e cheia de ternura. E dura isso: o fim de um dia e o início do outro.
   Não, acho que é somente a imagem que passa rápido, a sensação atravessa a noite e amortece os meus passos duros da manhã gelada.
  Nós três sentados num degrau da porta de casa, eu no meio, nunca caio, os dois cuidadosos e sem medo, me mantêm segura.

   Mas o sono acaba e o sonho é sugado pelo ralo da pia de domingo. Ninguém me segura, agora, solta na cama ainda tento me lembrar do calor da presença deles. Nós três nos levantamos juntos da cama. É cedo, tomo café, cercada pelos dois de outro tempo, enquanto me lembro, porque o sino tocou, da missa para qual nos apressávamos. Dois pares de mãos, menores do que as minhas são agora, me ampararam uma noite inteira.
   Penso em ligar para agradecer, para partilhar o sonho, mas o telefone não existe mais na casa em que nunca mais voltamos. Dez treze era o final do telefone; dez treze e depois de três toques uma voz familiar resolveria toda a sorte de dúvidas, medos, dívidas. Dez treze e adultescer era longe e muito desejado.
  Passo um pouco de manteiga, coloco um pedaço de queijo e reparto as duas últimas fatias de pão em três partes, ofereço duas delas para as personagens felizes do porta-retratos.

  Estivemos os três sempre à porta. A foto é antiga, ele de cabeça baixa porque fez pirraça na hora de posar, ela olhando para nós dois e eu sorrindo entre ambos: segura, amada e esperançosa. Encho a segunda xícara de café e acho que o sonho, embora tenha me deixado melancólica, também me lembrou que é possível uma quentura que atravesse o tempo, as geografias e a lógica dos dias. É domingo e eu cresci, é domingo e não tenho mais um final de telefone dez treze para dizer que ficará tudo bem; é preciso que eu mesma me diga, me ouça e acredite em mim. Adultescer é acumular funções, assumir àquelas que os outros faziam por nós.
  O pão acabou, o pó de café tem no máximo mais duas colheres; o que é pouco para as minhas duas xícaras de cada manhã. Acrescento o pó de café na lista de compras já começada.

  Troco de roupa, coloco um tênis e saio entre os dois que me amparavam no degrau da porta, na foto de mais de três décadas e no sonho de ontem à noite. Eles me dão a mão para atravessar a rua, me ajudam a encontrar os itens da lista nas prateleiras do supermercado e, depois, organizam as sacolas.
  No caminho, o irmão às vezes dispara em uma corrida, a irmã grita para ele voltar e eu me divido entre gargalhar e cuidar das sacolas. Ele provoca os cães da rua, que sempre respondem e ela sobe atrás, tentando acalmá-los e ameaçando contar, em casa, sobre o mal comportamento do menino. Eles sobem mais à frente e eu os assisto. Adultescer só foi preciso no caixa do supermercado, até agora. Mas ainda farei almoço para nós e pedirei ajuda com a louça. Depois podemos ficar os três sentados, de novo, no degrau da porta.

  A manhã de domingo apaga o meu sábado dolorido de maturidade não-idealizada, liberta as minhas memórias e recolhe, para mim, os sonhos que eu plantei em jardins que nunca mais visitei. As visitas noturnas que se estendem sobre o meu dia seguinte, trazem lar, afeto e achocolatado em pó para o apartamento de um quarto e inverno rigoroso de manhã julina.
  Na fotografia, de resolução muito ruim e lembranças muito nítidas, estivemos sempre à porta, esperando, assistindo, vivendo os possíveis de cada um, sonhando os impossíveis que nós três aprendemos a resguardar.

  Queria sonhar com eles esta noite, mais uma vez, mas hoje eu sei que não preciso e eles não aparecerão, mesmo que eu saiba que eles sempre estarão por aqui. Acalentaram a minha noite, me despertaram para um domingo mais quente, foram ao supermercado e empurraram, animados, o meu carrinho, dormitaram no meu sofá, enquanto eu lavava a louça do almoço e abriram espaço para o meu cochilo da tarde, quando eu terminei com a cozinha. Sonhamos os três abraçados, seguros e amparados pela nossa história.
  Eles acordaram antes.
  Ajeitaram o cobertor em cima de mim, calçaram os seus sapatos e saíram em completo silêncio. No final da tarde eu voltei a ser só e adulta; ser adulto é saber-se só. Foram, mas deixaram a casa.
Mais do que os quartos, a sala, a cozinha. Qualquer casa que eu habito, moro neles. Sento-me à porta e espero que algum dia o mundo me atenda. Eu nunca estou só, se esqueço um pouco de adultescer, quando sonho.

  Dez treze, eu nunca mais disquei e fui prontamente compreendida. Dez treze, eu nunca mais ouvi a voz que me dissesse exatamente o que fazer com a pergunta, a questão ou a minha vida.
   Anotando o endereço no cupom do supermercado, pela primeira vez, eu percebo que o  número do meu apartamento é mil e treze:
- A voz mora aqui. 
   Suportar adultescer num sábado gelado é desafio para muitos domingos de sonhos acalentados, ainda; adultescer é infinito, imponderável e inevitável. Os cachorros latem nos portões e não há voz de menina que os acalme. Adultescer é latido, grito, berro, é escandaloso e loquaz. Não respeita os limites de espaço, os desejos de permanência, os telefones que há muito estão desligados. Adultescer é compulsório, mas o inevitável também pode ser bom. Arrumo a minha cama e coloco somente um travesseiro, as visitas não ficam esta noite e só voltam mesmo quando o frio da maturidade doer de novo.


2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 29 de Julho de 2019

Querida Amanda,

Sim, perdoa, as cartas estão escassas. Ando taciturno, macambúzio e sorumbático por tudo isto que está lá fora destas linhas. Mas aqui dentro tudo se transforma.

Seu texto hoje é mágico, é física quântica aplicada. Lembrei da minha juventude feliz, numa fila interminável para conseguir uma linha telefônica numa agência que havia na Avenida Rio Branco, próxima à Halfeld. O meu não era dez treze, mas sua leveza me transportou ao que de melhor vivi na vida.

Não conhecia "Adultescer". Gostei do neologismo. Na busca pelo novo, aprendi pelo Mr Google, o semi-deus desta geração, que as duas formas são permitidas, se é que neologismo permite o engessamento de formas, ele apenas existe - adultescer e adultecer. Ambas são a mesma coisa vista por lentes diferentes.

Adultescer dói, e parece nunca ter fim, apesar de ser tão curto. Seu estilo, Amanda, evolui a cada texto, a cada parágrafo. Suas ideias vão nos permitindo viajar pelo atemporal campo da saudade de uma forma ímpar.

Sabe, Amanda, vou navegar um pouco (um argonauta?), perdoa, mas seu texto me fez refletir nesta manhã:

Adultescer seria algo como o espaço imutável, definido por Isaac Newton. O tempo, assim declarou, flui em seu próprio ritmo, alheio aos relógios que o medem.

A plenitude da vida, a fase da progressão humana, aquela onde trabalhamos trabalhamos e eventualmente nos divertimos seria a fase Einstein, que olhou para o espaço e o tempo e viu um único estágio dinâmico — espaço-tempo — no qual matéria e energia se equivalem, e a gravidade mantém as coisas todas interligadas.

A Maturidade é poesia, e aqui Amanda se encaixa, a poesia é a Mecânica Quântica, onde essa distinção entre ondas e partículas já não existe. Tudo são probabilidades, há a incerteza permanente. O Dez Treze existe sempre num ponto, se se fala, existe. Então se existe, e suas palavras lidas nesta manhã o trouxeram à luz, vou procurá-lo, o meu dez treze.

Drummond escreveu no seu enigmático poema "A palavra Mágica" -
Procuro sempre, e minha procura / ficará sendo minha palavra.

Vou encerrar esta carta com Manuel Bandeira, renomeando Antônia, validando Amanda:

O rapaz chegou-se para junto da moça e disse:
-Amanda, ainda não me acostumei com o seu corpo, com sua cara.
A moça olhou de lado e esperou.
-Você não sabe quando a gente é criança e de repente vê uma lagarta listrada?
A moça se lembrava:
-A gente fica olhando...
A meninice brincou de novo nos olhos dela.
O rapaz prosseguiu com muita doçura:
-Amanda, você parece uma lagarta listrada.
A moça arregalou os olhos, fez exclamações.
O rapaz concluiu:
-Amanda, você é engraçada! Você parece louca.

Você Parece Louca, Amanda!!!!! Graças a Deus!!!!

Um abraço

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 30 de julho desde ano que já está marcado com um dos mais nefastos da nossa história

Querido Paulo,
também ando ultimamente por caminhos um pouco obscuros, chegar aqui nesta madrugada foi a minha busca pela luz. Estamos todos feridos, Paulo, os que sabem das feridas e os que não sabem ainda, por estes últimos lamento ainda mais, porque também causam um pouco no seu irmão e em si uma dor que não se cura com facilidade.
Deixar de vir aqui, tenho achado, que é um castigo que eu mesma me aplico...só resta saber o porquê.
Mas olha, com toda dor, com toda a angústia dos últimos tempos, com toda essa violência indisfarçável, explodindo a cada segundo... com esses mitos e heróis fajutos, representantes do que há de mais desumano no mundo, há os sonho, os números finais de um telefone que renasceu, há o adultescer doloroso, desastroso, mas também passível de contemplação e prazer. E, sobretudo, Paulo... existem suas cartas! Existo num mundo em que cartas como as suas me encontram e isto é de um poder revolucionário também!

Enfim, suas cartas me ajudam muito, suas cartas se ligam a mim como os irmãos que nunca me deixaram cair do degrau, ao menos numa fotografia. Que bom que veio, que bom que a palavra, a escrita e os afetos também existem...assim nós resistimos!

PS: que linda a procura do Drummond, sigo com ele e como ele. Não encontro, mas busco.
PS2: Este poema de Manuel Bandeira é um dos meus favoritos! Como adoro essa ternura e beleza de elogio "Antônia você é engraçada! Você parece louca" (desconheço elogio maior!). Sinto-me imensamente contemplada: pela sua visita, pela sua leitura, pela sua carta, pela homenagem mais adorável com esse poema de Bandeira e por existir num mundo em que presentes como estes são sempre possíveis.

Obrigada, Paulo! Sua carta moveu muitas partículas em mim e isto é imensurável.

Sigamos!