quarta-feira, 31 de julho de 2019

É para que não morra que eu não me calo

  Acho que comecei a escrever quando te conheci. Porque conhecendo e sabendo que não era meu e
eu não era sua, quis que o meu olhar sobre você atravessasse os anos. Acho que trago, eventualmente, os nossos encontros em alguma escrita para que eles não fiquem só em mim e sendo só meus você continue anônimo. Acho que eu escrevo porque embora eu não saiba o seu nome, não me canso de te chamar.
  Comecei a escrever para que o mundo não nos engolisse, não apagasse a nossa importância, para que não sucumbíssemos à desimportância que nos dão.
  Talvez, escrever você seja a única medida que me ocorre, quando desconheço suas necessidades, desejos e sonhos. Oferecer palavras tem sido o meu gesto desesperado de te manter sobrevivente em mim, para que eu não o esqueça e não naturalize a sua invisibilidade cotidiana.

  Eu quis ser outra, tentei ser, buscava que o meu olhar tivesse alguma prática, que eu pudesse através dele salvar alguém, algo ou alguma experiência, mas nem a mim tenho conseguido salvar só por olhar.
  Eu queria escrever a um amor, queria ter poemas nascidos de cada suspiro meu, queria ser criatura amorosa e romântica, mas não sei escrever cartas de amor ridículas. Não me organizo em versos brancos; só consigo o caos e a paz na prosa livre de métrica.
  Eu queria escrever um tratado de paz respeitado por todos os povos, mas sou conflituosa da raiz dos cabelos até as suas pontas, nem a rebeldia do meu cabelo eu sou capaz de conciliar. Ou então, escrever uma teoria científica que desse esperança a uma mãe cujo filho nunca foi à rua jogar bola, mas eu não me abri às ciências naturais.

  Gostaria de poder escrever grandes utilidades que servissem à humanidade e a você, através dela, mas o teto do elevador, a linha solta no casaco de um desconhecido, as palavras cruzadas de uma senhora no café e o seu sorriso para a garçonete, o homem sozinho no balcão do bar, tomando cerveja às nove da manhã numa terça-feira e as risadas de um bebê no ônibus me seduzem, muito mais, para registrá-las.
  Gostaria que escrevendo você, suas ausências fossem amenizadas, que o meu desconhecimento sobre você fosse superado e que você, ao final da frase, soubesse quem eu sou. E após esse reconhecimento, tivéssemos nós um ao outro; não como posse, mas muito como possibilidade de compreensão e partilha.
  Gostaria de escrever uma canção para você, que o alcançasse em um dia difícil de luta e caminhos vacilantes. Você, que anda por toda a cidade, e que não para para ouvir uma música inteira na porta de um bar, antes de ser expulso.

  Gostaria de escrever sementes, que brotassem e se transformassem em comida todos os dias em um prato que você saboreasse em uma mesa, com cadeira e toalha. Mas isso também lhe foi negado.
  Gostaria de escrever liberdades nos seus passos, que eles não fossem errância ou falta de raízes, mas escolha e vento no rosto; brisa leve e não a rigorosidade do inverno das suas madrugadas trabalhadas.
  Gostaria de escrever abraços: quentes, familiares e duradouros. Que as ruas não pudessem te tirar, ao menos, a lembrança dos gestos passados, que você se soubesse amado mesmo na truculência do trânsito e dos transeuntes.
 Gostaria de escrever ternuras que atravessassem os seus dias, que confortassem o seu corpo que é tão público, ainda que quase nunca olhado. Queria escrever banho, casa e afeto. Queria escrever respeito e visibilidade.

  Há anos eu o vejo, não sei se desde o primeiro encontro a sua importância gerou algum sentimento em mim. Mas hoje eu sei que eu escrevo para você.
  Há anos os seus passos arrastados ficam atrás dos meus, que são mais apressados e têm para onde voltar todos os dias.
 Há anos as suas pisadas trêmulas, os seus olhos voltados ao chão e os seus ombros pesados de coisas que não servem mais a eles, e que só por isso pertencem a você agora,  sobrevoam os meus blocos de papel, as folhas soltas na minha escrivaninha e o meu lamento por não ter nada além das palavras para você existir mais.

  Eu escrevo para que você resista, que a sua dor doa menos, que o seu destino seja saudado em algum lugar desse hemisfério. Eu escrevo porque sei da nossa irmandade e da distância social que não estarrece o mundo.
  Eu escrevo porque não sei construir uma casa, salvar sua vida dos vírus e bactérias e nem sei se aprender a ler é uma necessidade sua, ao menos agora. Porque este último, talvez, eu pudesse ajudar em um encontro. Mas também entendo que as suas necessidades não passam pelos meus olhos; tão limitados de janelas coloniais.

  Eu escrevo por você, porque te quero vivo e quero que saibam da tua existência. Eu escrevo para que  alguém no mundo, além de mim, se comova com a sua vida e queira muito que ela seja sabida.
  Eu escrevo para que os seus passos, as suas mãos feridas, o seu rosto que não tem a cor da agonia ou do contentamento sejam conhecidos em outros cantos do mundo.
  Eu escrevo para que não morra hoje, que sobreviva a mais esse inverno, a mais uma cruel ditadura que não se importa com você.
  É para que não morra, ao menos em mim, que eu não me calo. É para que sobreviva, na minha existência, que eu não deixo de perseguir os seus passos e escrevê-los aqui. É por você que eu escrevo; é para você que não me lê, não me vê, não me sabe



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas (por enquanto Gerais), 11 deste agosto de 2019

Prezada Amanda
Musa do parnasianismo ímpar

Li seu texto, umas três vezes. Como de hábito, fico pensando - valei-me meu Jesus Cristinho, o que esta moça está rompendo agora no espaço-tempo desta dimensão?

Não vou me alongar - nada mais a acrescentar, afinal são suas palavras:

"E após esse reconhecimento, tivéssemos nós um ao outro; não como posse, mas muito como possibilidade de compreensão e partilha".

O Amor aqui expõe sua grandeza. Não há o simbólico, há o transitivo direto deste amor puro, sincero, em forma clara, elegante e romântica, como deveria ser. O verbo, em suas hábeis mãos, segue navegando nas linhas, nas frases, nos parágrafos, enfim, transita, isto é, segue adiante, integrando-se aos complementos, para adquirir sentido completo. O sentido da vida!

Vá, Amanda, ser gauche na vida!

Um abraço!

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas (na dor e no amor), 12 de agosto de 2019

Querido Paulo,
suas cartas regam as temporadas mais áridas daqui. É bom saber que nesses dias tão estranhos, ainda há quem frequente e dialogue com as esquisitices desse espaço/tempo; os pensamentos-tortos. Partilha e compreensão são regalos preciosíssimos e sempre os sinto, quando leio as suas cartas...

Quanto a ser gauche, é dor e delícia. Ainda não sei o que sinto mais...a dor da inadequação ou a da adequação. Transito ainda...não sei se chego.

Sigamos gauches, outras vezes nem tanto...o caminho é longo. Que bom tê-lo aqui.
Abraços,