domingo, 18 de agosto de 2019

Atravessar os desertos eu já sei, porque tem nome

   A atravessar desertos eu aprendi, meu amor.  Me acostumei a aridez dos dias, ao nariz reclamando
umidade, ao sol escaldante, às miragens, a confusão mental e eu achando que a vida, de repente, podia me abandonar e me deixar solitária lá; no calor do dia ou na friagem da noite.
  Os pés sangrando, os poros cobertos de areia, a garganta quase fechada, o desejo ilimitado por água, o desconforto da luta, a sobrevivência batalhada, tudo isto eu aprendi.  Ter muito medo, em alguns passos, noutros  uma coragem que eu nem sei dizer de onde vem. Porque eu aprendi a cruzar desertos, a saber que a minha finitude não está neles, porque ela me espera do outro lado.
  Eu aprendi secura demorada, mas passageira.  Sentimentos, órgãos, memórias ressequidas que um dia encontram água. Eu sei atravessar os desertos porque eu sei que eles acabam, entende?

  Assistir aos desencontros do amor eu aprendi com os filmes que eu não podia ver, mas que fingia dormir no meu quarto para, então, no meio da noite, me levantar e ligar a TV.
  Eu aprendi a chorar com a dor bonita nas fotografias e trilhas sonoras do cinema que não era para mim. Eu aprendi a testemunhar despedidas em preto e branco e a me rasgar com diálogos e choros das personagens que não eram as principais, mas foram sempre as minhas preferidas. Eu aprendi a torcer por finais felizes, mas também imaginar o que aconteceria depois da cena final. Eu aprendi a entender que o happy end não dura tanto assim, mas é terno e doce, no segundo que o cinema eterniza.

  A andar sobre desfiladeiros eu me acostumei também, pode estar certa. Aprendi que equilíbrio é, além de treino,  muita vontade de chegar ao outro lado, pois não tendo razão maior para a travessia, tudo parece demasiado sem vida e arrastado.
  A dirigir carros e não deixá-los cair nos abismos eu aprendi; porque o solo nunca foi plano e seguro comigo.
  Eu sei evocar orações, santos com os quais eu quase não conversei mais depois que abandonei dogmas e templos; eu aprendi a ver um deus mais humano e a mim mais celestial. Eu rezo o terço antes da travessia, no ponto exato em que eu tenho mais medo e ao chegar do outro lado. Eu tenho sido muito crente, desde que não frequentei mais as aulas de catecismo.

  Atravessar a praça central sob ataque inimigo eu sei bem como é. O coração batendo desesperado, as mãos suadas, a dúvida do seguir ou permanecer no esconderijo, as técnicas para tentar não ser vista fracassando uma a uma. Eu sei sentir o sangue na boca, antes do tiro, antes da ferida; eu sei querer me salvar e também querer dar a mão a alguém e ajudá-lo a se salvar, eu sei como é quando a mão não alcança.
  Eu sei permanecer por horas em pé, sem fazer xixi ou beber água, eu sei ranger os dentes sem fazer barulho e pensar em coisas distantes da praça, enquanto o fogo cessa.
  Aprendi a me desvencilhar das mãos que oprimem - de algumas delas - , quando me alcançam e a não olhar para trás, com o risco de nunca mais ver a liberdade. Eu aprendi a enxergar inimigos na praça, ainda que sorriam e me cumprimentem pela manhã.

  Parir sem pai e anestesia é exercício diário da minha maternidade sem visitas ou chás com presentes e bolos.
  Aprendi a esperar as horas, semanas, meses ou anos de uma gestação, a me alimentar por dois, a quando enjoar chupar limão. Aprendi a acalentar um desejo, construir um projeto e ele não nascer; ser o filho que não vingou, só eu comemoro todos os anos o dia do seu nascimento. Um filho que eu dei o nome e ainda chamo, enquanto durmo.
  As minhas gestações são complicadas e solitárias, mas tenho sobrevivido a cada nascimento e morte.

  Ao que eu não me acostumo e o que me angustia são os dias comuns, em que o extraordinário abandona as horas desmaiadas num canto. São as palavras, sem versos, na tela do computador, as reuniões que não evocam esperança, os números sem história, as vezes em que se esquece de sorrir por semanas.
Eu não me acostumo com as horas vazias de encanto: as filas sem conversas, os cães que não ladram, as crianças que sempre estão na escola.

  Atravessar os desertos eu já sei. O que é difícil é continuar em agosto, fazendo marcações no calendário da mesa. Sem bombas, gás lacrimogênio, sem ver a vida por um fio e eu atada à ela. Sem direções perigosas em desfiladeiros, sem gestações de alto risco que às vezes não dão em nada.
  Tenho medo dos dias mornos, são eles que contaminam as minhas entranhas, são eles que silenciosamente desmancham os nós pequenos das minhas esperanças.
  Por que sou assim? Por que somos, meu amor?
  Vamos aprender a chamar o elevador sem paixão, esta é a guerra mais bruta e a mais frequente. Atravessar o deserto eu já sei, porque ele tem nome. Mas esses dias de tranquilidade letárgica eu não sei ainda o que fazer com eles, porque não sei do que posso chamá-los.




3 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 23 de agosto de 2019

Prezada Amanda
Peregrina deste deserto árido

Primeiro - puxa vida - Adriana Calcanhoto extraordinariamente reinventante da sua qualidade ímpar.

Do deserto verificamos tantas estrelas, e um dia, quem sabe, repousando sob o saber de Sartre, contemplarei que "os ideais são como estrelas, nunca as alcançaremos. Mas, como marinheiros em alto mar, traçamos nossos caminhos, seguindo-as" (JP Sartre).

Sempre venho aqui aprender e fico pensando - o que Amanda estava pensando quando pensou neste ponto, neste parágrafo, nesta travessia. Não sou um crítico de cinema, mas tem um filme - O vazio do domingo - que é o deserto sob a óptica feminina. Esta carga monumental de lógica, racionalidade, percepção do poder cognitivo do qual a mulher é maestra. Os diálogos deste filme e seu final metafórico, taoísta, é como ler este texto aqui - promove movimentos neurais.

Atravessamos desertos todos os dias ... todos os dias. Tem um poeta, destes anônimos ultra-conhecidos, cuja grandeza é tão magna, que falamos dele sem sabê-lo. Foi ele, por exemplo, que poetou em Gandhi o termo Mahatma (Mahatma significa uma grande alma) e crescemos achando que Mahatma era apenas o nome de Gandhi - nada disto - é uma expressão poética de TAGORE (Rabindranath Tagore).

E por causa do deserto, que causou as estrelas que causou Sartre, que causou esta lembrança, tem um poema de Tagore que trás as flores do deserto para a nossa vida espiritual - assim eu li Amanda neste brilhante texto:

"As nuvens de tempestade rondam no céu,
as chuvas de junho se precipitam,
e o vento úmido do leste corre pelo deserto
para tocar sua música na flauta dos bambus.
Então, de repente, e não se sabe de onde,
surgem multidões de flores,
dançando sobre a relva em louca alegria.

Mãe, acho que as flores vão a uma escola embaixo da terra.
Elas têm suas aulas de portas fechadas e,
se quiserem sair antes do tempo para brincar,
a professora as põe em um canto, de castigo.
Quando cai a chuva, porém, é dia de festa para as flores.

Os galhos se entrechocam na floresta,
as folhas murmuram ao sabor do vento selvagem,
as nuvens trovejantes batem palmas com suas mãos gigantes,
e as flores-crianças saltam fora correndo, vestidas de amarelo, rosa e branco…

Mamãe, bem sabes que a casa delas é no céu,
onde estão as estrelas.
Não percebeste a vontade que elas têm de ir para lá?
Não sabes por que correm tanto?
Pois eu sei para quem as flores levantam os braços:
elas têm a mãe delas, assim como eu tenho a minha!"

Rabindranath Tagore

Um abraço e gratidão pelo seu poder de escrever coisas lindas

Paulo Abreu

Paulo Abreu disse...

Apenas complementando:

O poema de Tagore chama-se a "Escola das Flores" - o deserto é a escola das flores.

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 25 de agosto de 2019

Querido Paulo,
não é necessário que eu declare (mas ainda assim o faço) que cada carta sua, especialmente no deserto atual, é um presente, uma dádiva, uma delicadeza de alento.

Neste ponto da travessia, coincidentemente, tenho olhado muito para o céu, mais que olhado, tenho me alimentado diariamente da sua beleza espetacular, da qual esquecemos porque está sempre ali...

E então você, caro amigo, traz Sartre, as estrelas e esta beleza de poema... "Escola de Flores"...não poderia ser mais grata pelas delicadezas infinitas nesta carta.

Sou eu quem agradeço pela sua companhia nesta vastidão desértica. É preciso aprender com as flores, a chuva virá nos salvar...
Abraços,
Amanda