segunda-feira, 26 de agosto de 2019

O avesso é o lado mais certo

   Coloco o bastidor no colo, ao lado do carretel de linha preta, para os contornos, e com a agulha na mão direita tenho a primeira lição: colocar a linha na agulha. A minha precisão é avaliada, como no teste de direção do ano passado, mas no lugar do homem sisudo tem uma senhora de rosto vermelho e voz doce. Acerto na terceira. - Muito segura, menina, isso é bom. Neste teste eu passo.
  Gosto mais do menina do que do elogio pela linha na agulha. Linha e agulha não são novidades; o bastidor sim e o ponto de cruz também.
  É a primeira vez que eu tento alguma atividade artesanal, com aulas. Não me matriculei no momento mais adequado da minha vida, porque tinha muitas outras prioridades, inclusive profissionais; não planejei aprender ponto de cruz, quase aos quarenta, para empreender ou fazer meus próprios presentes; mas cheguei num dia.

  Pelo cheiro do café, que sempre é fresco, pelas linhas coloridas na vitrine da loja na frente do ateliê, pelo sorriso e pela voz suave da senhora, que me atendeu quando eu buscava uma entretela para a cortina que ameaçava a desabar da minha janela, mas principalmente pela imagem de calmaria que as mulheres inspiram.
  E eu quero ser uma bordadeira serena e feliz. Eu quero criar belezas no tecido ausente de emoção; eu quero colorir as horas cinzas dos meus outros seis dias da semana, eu quero inventar um outro mundo, um outro lugar para descansar, quando aqui doer demais.

  Há quase um mês tenho aprendido a cruzar o tecido com a linha, a fazer pontos seguros, mas não apertados demais, a entender a sequência de buracos mínimos, na minha pequena tela. Tenho aprendido a não ter pressa, sono, fome, vontade urgente de ir ao banheiro e toda sorte de outras preocupações por um hora, uma vez por semana; tenho aprendido a aprender sem medo.
  Na sala pequena, de pé direito alto, somos três discípulas e a mestra; eu tento aprender ponto de cruz, uma menina aprende bordado, enquanto a mãe dela aprende macramê. Na sala, falamos pouco, a maior parte das conversas é sobre o nosso aprendizado. - Será que a linha vai até o fim? - Essa tesoura é de quem? - Tenho que desmanchar tudo ou consigo continuar, se só desfizer a partir do erro?
- Desmancha tudo! A partir do ponto errado é só para quem tem experiência.
Ela sentencia e eu aceito.

  Mas de todas as lições naquela sala, a que mais me instiga e desafia é o cuidado com o lado contrário do trabalho, a parte de trás dos pontos é a que a professora mais analisa. E é rigorosa com os avessos do bastidor:
- Tá vendo aqui? Tá aparecendo emenda. Trabalho bem feito tem que confundir o lado certo com o avesso, os dois têm que estar perfeitos. Desmancha.
  Há um mês tenho aprendido mais a desmanchar do que a construir; há um mês eu tento ser duplamente boa; há um mês tenho aprendido a ser e parecer uma coisa só.
- O ponto de cruz a gente analisa de trás para frente. Se o verso é bom, a frente não tem erro.
  Há um mês tenho aprendido o reverso do que há na vida: primeiro o que não se vê e depois o mais visível.

  Atrás de um país das fotos icônicas, tem sempre outro país; onde as mães choram os filhos que são mortos muito jovens, as crianças vão para a escola só para comer, a justiça condena a pobreza, que pertence aos mesmos de mil e quinhentos. Atrás de um sonho vermelho de país justo, tem um verde amarelo que produz ódio e reproduz ignorância.
  Atrás de um amor tem sempre outro, que é ressentido por ter falido ou reverenciado porque durou até as vontades se desgarrarem. Atrás do amante, tem o desconhecido, que fala mais alto do que se esperava, que fere e pede desculpas com a facilidade de quem não conhece o fio gelado da lâmina.  Atrás de um amigo, um desencantamento que não terá solução. Atrás de um sonho, tem a rotina; atrás da promessa, a solidão.

  Atrás dos sorrisos, a tristeza que afunda. Atrás dos versos, dos quadros, das partituras, alguém que luta para o outro não sangrar. Atrás do barulho das panelas nas sacadas das coberturas, o silêncio do vazio das panelas das periferias. Atrás da bala perdida, as mãos de um homem cuja mira também é viciada.
  No meu bastidor, eu tenho aprendido a desfazer tudo aquilo que só ficará bom de um lado. Porque no meu bastidor, o avesso é o lado que importa.

  O país afundando e nós tentamos terminar um bordado, o amor se mudando e nós sem sabermos se vamos atrás dele ou no caminho contrário; as horas passando e eu gostando mais da parte de trás do meu bordado do que aquilo que vai na frente. Depois dos contornos, começo a aprender o preenchimento.
- Cada coisa a seu tempo.
  A senhora de nariz vermelho me ensina.
  Eu sempre gostei mesmo de olhar atrás; às vezes dói, mas sempre liberta.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 28 agosto 2019

Prezada artesã das letras, das linhas e do avesso
M.D. Amanda Machado

Não me surpreende vir à tona de nós outros mortais mais uma habilidade executada com a maestria com a qual explora o universo feminino. Com encantamento, sempre.

O avesso - No avesso está a nossa ansiedade, o nosso medo, as nossas culpas, o nosso receio de estar no caminho errado. A artesão vem tecendo estas dores de uma forma bonita, elegante. O avesso. A professora é uma maestra da filosofia - errou, desfaça e refaça. É assim que deve ser a vida. Ficamos presos ao que os outros vão pensar - os outros são os outros.

Este tear literário me levou a uma reflexão predita por Zenão de Eleia, um filósofo da Grécia Antiga, que cuidou de tecer fios de reflexão a respeito dos efeitos do paradoxo.

O fenômeno descrito por Zenão se refere às consequências das ações constantes e ininterruptas do observador sobre um desejo ou vontade. Ou seja, Zenão compreendeu que a felicidade e a materialização dos desejos apenas podem ser conseguidas pelo ato de confiar e soltar, que significa não ter ansiedade ou dúvidas de que você é merecedor de tudo de bom que a vida possa te dar.

Ao preocupar com o avesso, a tecelã perde o contato com seu foco, é um paradoxo. Soltar-se e confiar nos desígnios da alma é ainda algo sobrenatural para a maioria da nossa espécie - o medo de errar nos leva mais a nos preocuparmos com o erro do que com o caminho. Abrace a professora, ela é o Zenão de Eleia que o universo colocou na sua frente.

Um abraço! Soltar e Confiar não requer prática, requer confiança no que faz.

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 30 de agosto de 2019

Querido Paulo,

O avesso é o que também tenho e não posso evitá-lo, se eu quiser tecer alguma beleza.
Sim, a professora é uma mestra formidável, como você aqui. Estou cercada dos melhores professores...sorte a minha!

A mestra me ajuda com o bastidor e as linhas e você com a filosofia e as preciosidades poéticas com as quais me presenteia.

"Soltar e Confiar não requer prática, requer confiança no que faz"...que grande ensinamento! Grata por isto, também.
Abraços