sexta-feira, 30 de agosto de 2019

Por princípio poético, não acho que o amor é só aquele

  Por princípio poético não me levanto logo ao acordar; preciso, antes, olhar ao redor, sentir a cama quente, olhar alguns minutos para o teto, para as paredes e a beirada da cortina encontrando com o lençol na cama. Preciso dar nitidez ao sonho e deixar que ele se liberte pelos meu olhos abertos. Tenho que olhar nos olhos do gato e não dizer nada, esperar que ele suba na cama e nós dois contemplamos o nada, cada um à sua maneira.
  Tenho que olhar para os livros nas prateleiras e amá-los; não como objetos, mas como partes do que sou agora.

  Por princípio de poesia, não crio pássaros em gaiolas brancas, peixes em aquários vintage ou cães perfumados no apartamento; e o gato vai e volta quando bem quer. Um dia ele me abandona e eu nem sofro, só sentirei muitas saudades, mas isso também por conta da poesia.
  Por princípio poético, tenho saudades antes das partidas, antevejo vazio; fico melancólica, vulnerável e dolorida pela ausência que ainda nem é. Em nome desse princípio é que ninguém nunca vai embora de verdade

  Por princípio poético, escrevo cartas para ninguém e me declaro a todo amor que é único, mesmo que sejam muitos. Revelo segredos, divido sonhos, invento outros tantos; como mais, bebo mais, cozinho mais, sorrio mais, canto mais alto, tiro para dançar no meio da rua e convido para que fique para o café da manhã. Não me caso, por princípio poético, mas tenho mil núpcias, lendo Neruda, Florbela e Hilda.
  Por princípio e precisão de poesia, escuto as conversas nos ônibus, nas filas, nos elevadores, nos recreios da escola, faço perguntas e dou conselhos imaginários ao final de cada problema segredado a outros. Por princípio poético, desligo a TV no jornal da noite, não entro em templos para ouvir os sermões e do futebol eu só sei pelas manchetes em caixa alta na banca.

  Por princípio de poesia, tenho olhado o amor sem esperar os clichês do amor: romance, aventuras, superações. Só ver a metade do pão francês em cima da mesa e saber que alguém quis partilhá-lo comigo. Café doce, que não gosto, mas ele gosta. Chai latte aguado, porque era para diluir o chá preto direto no leite. - da próxima vez ficará melhor.
  Nem vinhos e queijos, nem Paris e Amsterdã; o amor é uma casa bagunçada, com a louça suja que vamos lavar antes de dormir; um lava o outro seca.
  Por princípio poético, tenho dispensado as listas de parcerias idealizadas, os padrões, as correspondências exatas; aberta às surpresas, tenho me rendido ao inesperado e aprendido e amado.

  Por princípio poético, preciso mudar os móveis da casa uma vez por ano, senão mudar de casa. As flores prediletas são as plantadas,  mais do que os buquês. Porque duram, porque decoram com vida e quando morrem deixam raízes e novos brotos.
  Por princípio de poesia, pesquiso na cidade vários tons de papel de parede, mas nunca escolho nenhum; compro xícara decorada com aquarela e chamo a minha mãe para vir tomar chá.
  Pelo mesmo princípio, tenho comido pipoca, algodão doce, maçã do amor, pirulito que colore a língua, chiclete que faz bola,  especialidades que alimentam o espírito da criança que não morre quando o adulto acha que se instalou.

  Por princípio de poesia, tenho que confiar nas pessoas, na vida, nos mistérios e destinos pintados por mãos que eu desconheço, mas sabem mais sobre mim do que eu mesma.
  Por princípio de poesia, confio que as pessoas  mentem,  enganam e  traem porque tentam, a todo custo, não perder o que não percebem que já foi. A coragem sai pela mesma porta que a verdade. Ambas ficam de mãos dadas no quintal, esperando que a mentira sirva o jantar. O comensal sai satisfeito por algumas horas, mas desnutrido do que importa.
  Por princípio poético, fico perdida em pensamentos, dividida pelas dúvidas e culpada por não saber comunicá-las a ninguém. Só a poesia me redime da fraqueza de ser humana.

  Por princípio de poesia,  o tempo é meu amigo, o gato é o meu relógio e as cortinas não me apartam do mundo lá fora; a liberdade é um legado que eu tento cultivar no mesmo canteiro dos alecrins e das hortênsias e o amor escolhe as xícaras, chama a verdade e a coragem, sentadas ainda no quintal, para o chai e juntos nos aquecemos, fazemos planos e achamos que o instante durará tanto quanto os livros.




5 comentários:

Kellen disse...

Eu só leio com sua voz ❤️

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 06 de setembro de 2019

Poetisa Amanda Machado
Narradora taoista do universo Yin

uau! Que conto é este? É uma poesia fantástica. Apaixonante. Tomei a liberdade, sem a devida anuência prévia de postar um trecho no meu espaço da corte imperial monocrática, para ficar bonito o lugar.

uau! Nunca mais pare de escrever.

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

E isto é bom ou ruim, Kellen? rs

Amanda Machado disse...

Minas Gerais,08 de setembro de 2019

Querido Paulo
Leitor generoso e pulverizador de humanidades

Aprendo muito com você, suas visitas dulcíssimas colorem este espaço e, ainda, me visita com essa generosidade de olhar. Muita honrada pela sua homenagem no Reino do qual eu tanto gosto! Fiquei emocionada.

Quanto ao pedido....é um mistério, inclusive para mim, se serei capaz de corresponder...
Abraço,
Amanda

Kellen disse...

Kk é ótimo :)