terça-feira, 10 de setembro de 2019

O que não sabíamos é que ter sede na tempestade não era só metáfora

  Não sabíamos de Chernobil antes do acidente; até então, era só uma cidade desconhecida fincada  no leste europeu. Já em Chernobil, não sabiam das consequências de um desastre antes da explosão e da fumaça grafite que os arrasaria. Conhecemos Chernobil tarde demais; Chernobil conheceu a morte cedo demais.
  Não sabíamos da talidomida, até os inúmeros filhos concebidos virem marcados por um desconhecimento químico. A indicação do fármaco era uma, os seus efeitos adversos só conhecidos quando não havia volta. 

  Não imaginávamos a criação de Alberto, sobrevoando Hiroshima, devastado-a com Mururoa e Nagasaki. Nem Santos Dumont imaginou sua criação lançando o medo, os gritos, as chamas, os muitos fins.
  A Terra não é plana,  passos humanos encontraram sim a lua, as vacinas protegem de centenas de doenças, muitas quase extintas; disso sabíamos, mas parece não sabermos mais.

  O que sabíamos era que arqueologia nenhuma mudaria o passado; mas muda a nossa percepção sobre ele e as histórias que contamos às gerações presentes. E isto é capaz de desenhar novos futuros, antes inimagináveis.
  Sabíamos que desviar do amor não o apaga; só evita o encontro. Sabíamos que não falar um nome não é capaz de silenciar a voz de outra pessoa que ainda ecoa dentro, com os gritos e, depois, os sussurros.
  Sabíamos que não termos fome não alimenta quem a tem; e são muitos os famintos, mesmo que não estejam mais nas capas dos jornais. Sabíamos que resistir é uma luta diária e muitas revoluções acontecem diariamente sem nem serem percebidas.

  Não sabíamos que um homem pequeno, com voz e gestuais eloquentes poderia ser crível, idolatrado e mão nefasta que apontaria para a destruição em massa da dignidade humana. Não sabíamos que em nome da limpeza, da moral, de corpos e mentes perfeitos, a diversidade seria calada nas câmaras de gás.
  Não sabíamos que a história se repetiria muitas vezes, só porque somos os maus alunos das lições nas quais não prestamos a atenção devida.
  Mas sabíamos dizer em tom elevado que o nosso lado é o certo, ainda que estejamos sentados na mesma fileira do ódio e da intolerância.

  O que não sabíamos, antes, é que achávamos que era amor, mas doía; que pensávamos que era amor, mas prendia; que sonhávamos que era amor, mas custava tudo o que éramos; então não podia ser.
  Não sabíamos antes, que as palavras podiam ser salvação e derrocada, num mesmo diálogo, entre as mesmas pessoas.
  Não sabíamos que com mais de sete bilhões de humanos no mundo, bastava não ter aquele um e o vazio se instalaria como se não houvesse mais ninguém. E que a saudade podia também ser tranquila, calma, um suspiro conformado daquilo que, mesmo longe, continua dentro. 

  Não sabíamos que amar devagar poderia levar a muito longe e amar sem limites podia nos cansar uma hora. Que ter filhos era tão bom e tão difícil quanto não tê-los. Que quem os tem não sabe viver sem pensar neles e quem não tem não sabe nada de como é tê-los e, num mesmo tempo, descobrir que nunca foram deles, os filhos paridos.
  O que não sabíamos era que arder, de um calor profundo, no inverno era possível e ter sede na tempestade não era só metáfora.  Não sabíamos que a felicidade já andava em nós quando a procurávamos e que se esquecêssemos dela, ocuparia a casa, a cama, as roupas, os dias, as gavetas, os copos e pratos no armário, mas que se fôssemos à sua procura saltaria como rã no brejo.

  O que sempre soubemos é que construir dura bem mais do que dizimar, que amar é também uma inteligência e que a poesia não tem contraindicação. O que sempre soubemos é que a arte não nos livra das dores da vida, mas suaviza cada entranha contaminada.
  Sabíamos que a liberdade é essa rã irmã gêmea da felicidade, que quem a tem não sabe ter e quem a quer perde muito em tentar alcançá-la. O que sabemos que é que o moinho da história não para e que os ventos que movem suas hélices não escolhem um lado.
  O que não sabíamos, até acontecer, é que ter sede na tempestade é possível, porque a falta é artigo comum, mesmo entre os muito prósperos. 


5 comentários:

Kellen disse...

Você é maravilhosa ❤️

Bel disse...

serase sou a própria Alfonsina? rs
Bjo, Bel
(tenho de vir aqui, NO face, sem tempo irmão!)

Amanda Machado disse...

Tomando uma no Barthô e falando da vida...aqui também. Amo vocês!

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 12 de setembro de 2019

Mestre das artes Amanda
Mui digna representante da espécie homo sapiens sapiens

Resumo da dor explícita (tem cura): "Sabíamos que desviar do amor não o apaga; só evita o encontro. Sabíamos que não falar um nome não é capaz de silenciar a voz de outra pessoa que ainda ecoa dentro, com os gritos e, depois, os sussurros."

Sensacional! Sempre sendo a melhor versão de si mesma, e isto não é pouca coisa. Há aqueles que não sabem e não querem saber.

E você posta Rita Payes, uau, sigo a arte desta moça desde o tempo que cantava, tocava trompete e encantava no Sant Andreu Jazz Band, magistralmente comandada pelo Joan Chamorro - Jazz sendo Jazz, sempre, assim como Amanda sendo Amanda, sempre.

Vale sempre vir aqui!

Um abraço!

Paulo Abreu

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 19 de setembro de 2019

Querido Paulo,

Ausente daqui e semi-presente no mundo da normose, graças a uma imunidade pouco confiável (ou muito, que é talvez ela que me ensine limites...)
Li a sua carta e tardo em responder, mas sempre é uma felicidade cada uma delas. Não canso de repetir.

No entanto, não posso concordar com a generosidade do seu olhar "sempre sendo a melhor versão de si mesma"...outra versão, mas sem hierarquias, por favor...ao menos aqui, eu e as versões tentamos seguir uma cartilha mais democrática, socialista ou anarquista... não sei...quem sabe? rs

Sim, adoro Rita Payes e essa música é sublime!

No mais, seguimos na luta, o que com música, com escritas, com partilhas e visitas tão auspiciosas facilitam muito a jornada.

Obrigada pela visita, estive mesmo precisando delas...e caldo de galinha. Agora, voltamos aos cafés!
Abraços