quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Aberta a temporada de pisar macio, ainda que em solo duro

  Aberta também a temporada de olhar para frente, numa prospecção afetiva, sensível, estética e, principalmente, generosa; consigo e com os outros. Sem remoer o amargo, o triste, o cinzento, a arma que fere pela mão que nunca cicatrizou.
  Aberta a janela para os dias de vício em cores, em sorrisos, em bebês que sorriem nos ônibus, em bom-dia a estranhos; aberta para o ócio, os erros, os enganos, mas não para os mal-entendidos, ou o entendimento completamente ignorado e repetido ou o prontamente partilhado.

  Aberta a estante de livros para as mesmas leituras de outros tempos e, por isso, novas, mas também as nunca abertas antes, mas tão familiares.
  Aberta para o instante, a palavra, a poeira, a novidade, aberta para passar as páginas com o dedo molhado na saliva fresca, se integrando a outras tão pretéritas.

   Oficialmente bem-vindos os dias de apaziguamento, lua laranja, alguém com quem compartilhar, mesmo que do outro lado da cidade, ambos enamorados pela mesma luz de desejo pelos amanhãs possíveis e os sonhados.
  Abertos os dias de perdão, de ternura, de perguntas como-foi-o-dia, durante o jantar, de olhos que encontram outros olhos que enxergam, muito mais do que olham; o dias das delicadezas das escutas interessadas e amorosas, dos lábios que desconhecem motivos para não libertarem verdades. Da sala desarrumada, barulho de visita, beijo de avó, suco adoçado com o mel que a mãe mandou trazer ainda em maio.

  Inaugurado o tempo dos salgueiros, tarântulas e elefantes; das mulheres, das fontes, das águas correntes; das bicicletas, das sapatilhas vermelhas, do coral na escadaria do teatro; dos namorados nas praças, dos amores impossíveis que sabem rir da impossibilidade e dos possíveis que não se negam; das senhoras dançarinas, que sem par masculino, aprendem a conduzir e a se deixarem ser levadas; dos voos e das caminhadas; das subidas e das íngremes descidas e, novamente, subidas; do ciclo da vida, da água, das marés, da lua, dos afetos: acaba um, começa outro, não acaba um, mas começa outro, acabam ambos e se aperta a solidão até algum outro se aproximar.

  Aberta a porta para o que não cabe, não quer, não sabe, não sente, não encanta, não recebe em casa e não oferece a mão, não tira para dançar nem se tiver música.
  Escancarada a porta da rua para o que não acompanha, não aguarda, não compreende, não sabe dos pratos, das flores, das palavras, dos gestos tão nossos; dos pronomes plurais.
  Aberta a temporada de despejos de críticas raivosas, de ofensas, preconceitos, desafetos, artigos enrolados pela linha do humor. Não mais rir do que nunca teve graça.
  Aberta a casa para os novos ares: as promessas e as tentativas do seu cumprimento, para os chás, os boldos, as mandingas, as orações, os cantos gregorianos, as canções em iorubá, as artistas, as operárias, as donas de si e as sem nada, para as gordas, as magras, as que não reconhecem forma, mas que insistem no conteúdo.

  Aberta a temporada de pisar macio, ainda que em solo duro; atravessar pontes inseguras; subir com respeito em cavalos indomados. Conversar, criar, amar, estranhar, gerar, construir, sofrer e refazer, entranhar, alimentar e também matar sedes ancestrais.
  Abertos os dias das confissões ao telefone, o travesseiro sem lágrimas da noite insone, de abraços à própria vigília e se perdoar por estar cansada no dia seguinte.
   Aberto o tempo das dúvidas, mas também da única certeza possível - não querer.
  Aberto o coração para expulsar sofrimentos antigos: repetidas renúncias, ser outra para ser amada, deixar a si na soleira da porta, enquanto tenta, e quando voltar não saber onde deixou.
 
  Aberto o peito para receber, para dividir, para querer conhecer, para criar cenários e saber ver os já existentes, para inserir trilha sonora e cantar junto, para a ação e o texto, para a direção e a atuação das personagens.
  Para a coragem do grito, para o incentivo ao sussurro, ao suspiro, ao que nem sempre precisa de espaço fora.

   Aberta, desde muito, nem sempre ocupada, mas intensamente em busca.





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