terça-feira, 24 de setembro de 2019

Eu não sou o meu país, mas eu sou o que não pode o meu país

   Eu não me pareço com a minha mãe, nem rosto nem história. Mas a unha raspando alguma sujeira do azulejo, a concentração em um trabalho doméstico muito minucioso, o cantarolar baixinho, enquanto esfrega com satisfação alguma mancha no piso sou eu e a minha mãe; nos gestos.
  Eu não estudei corte e costura, como a minha mãe, mas eu medindo a cortina, analisando as listras do tecido das cadeiras, passando as minhas calças com vinco sou eu e a minha mãe, com a fita métrica e o ferro de passar roupas. 
  Eu não me pareço com a minha mãe, mas o olhar no relógio quando alguém demora, os ciscos nos olhos quando o outro chora, a medida da febre, a companhia para o médico, o sono no hospital ou o apoio no consultório odontológico sou eu e a minha mãe com o coração nas mãos. 

  Eu não sou o amor que me pede, que solicita, que quer o colo e a atenção contínua, não sou o ciúme que ele tem do que eu sou sem ele, a inveja das cartas que eu recebo e pelas quais eu me enamoro. Mas eu sou a confusão de não saber o que é destruição ou crescimento; o que é desafio ou condenação. Eu sou a linha entre o que é liberdade e o que é simplesmente fim.
  Eu não sou o amor que me dão, com as concessões, com os limites, com os escambos entre espelhos e ouro,  mas sou ora ouro ora espelho; sou a inteira sem querer ser metade. Ás vezes uma inteira que não é capaz de satisfazer.

  Eu não sou os livros que eu li, eu não me pareço com as heroínas de Austen que eu amei e pelas quais eu chorei páginas a fio, mas eu sou Elizabeth Bennet orgulhosa e decidida a ter mais do que me oferecem.
  Eu não me pareço com a personagem machadiana, mas a dedicação amorosa ao que no fim é uma ilusão,  a invenção de um amor, o Bentinho cultuado e a sua desconfiança  sou eu e Capitu.
  Eu não me pareço com o lirismo de Manoel de Barros, mas os seus passarinhos, os seus meninos e os  voos também me levam para um outro lugar que não esse, tão cinza.
  Eu não me pareço com as metáforas, as invenções da língua, mas eu sou uma coisa que diz outra; um fogo que arde sem queimar. Sou outra coisa, que não essa tão explícita.

  Eu não sou as minhas limitações, mas a mãos que não alcançam a prateleira de cima, o olhar perdido em desesperança e também desejo, sou eu. Eu sou o repouso e a calma, a tentativa no pulo e a busca por um apoio; sou vulnerável, pedindo ajuda e corajosa, tomando partido.
  Eu não me pareço com o diagnóstico médico, não me perturbam sempre as dores, os inchaços, as proibições e os corticoides; mas eu sou o repouso, a obediência às orientações, a necessidade de querer mais vida.
  Eu não me pareço com os exames, as internações, o quimono verde água, mas eu sou todos eles, buscando amenizar os incômodos.

  Eu não sou a política do meu país, eu não um partido, uma bandeira, uma cor, uma frase de ordem, não sou livro sagrado, tampouco negação profana. Não sou um discurso, uma invenção de heroína ou mito, mas as crianças negras assassinadas, as proibições, as mentiras, os cortes, as verbas desviadas, as explicações descuidadas também matam a minha esperança com um tiro de fuzil.
  Eu não sou a barbárie eleita, não sou vil, não sou contrária à vida, aos afetos, à diversidade; mas eu também atiro, atirei e atirarei quando eu finjo que não é comigo.

  Eu não sou o que querem que eu seja, o sonho da minha mãe, os planos do meu pai, a defesa da minha irmã ou a ilusão do meu irmão. Eu não sou o que a minha sobrinha pensa sobre mim, as histórias que os meus alunos contam pelos corredores da escola, o que os amantes inventam nas suas conversas machistas. Mas eu sou um sonho possível materno, uma linha paterna feita com régua improvisada, uma possibilidade fraterna, sou as invenções infantis que me olham, a memória de um amante platônico ou real.

  Minha mãe não leu Shakespeare, minha mãe não conhece a história trágica de Desdêmona, mas foi testemunha do ciúme cego do marido da sua tia que teve a vida interrompida por incontáveis facadas de ódio.  Eu sou a minha mãe, mas minha dor não é a mesma que a dela.
  Meu amor e os seus deslizes se repetem desde a minha juventude até ontem à noite; meu coração não envelhece; se não tenho espelho, sou sempre estreante.
  Os livros que li, leio e lerei até o último dia, só me dão o que eu já tenho sem saber. As palavras me salvam e afogam, me libertam e  apontam as minhas prisões infinitas. As vidas literárias são minhas também.
  Eu não sou as imagens das minhas articulações, as minhas plaquetas, o remédio duas vezes ao dia, mas sou os joelhos, os pés, as tonturas; sou o levantar e o ir para além da dor.
  Eu não sou o que pensam sobre mim, mas sou também o que podem pensar sobre mim. 
  Eu não sou o meu país em labaredas, fome e destruição, mas eu sou o que ele ainda não conseguiu ser; sou esperança e medo, coragem e desistência.



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