domingo, 29 de setembro de 2019

Eu queria ser aquela da árvore inventada, do amor e do destino inventados

   Eu queria ser aquela que chegasse do trabalho, abrisse as janelas, recolhesse as roupas secas, fizesse uma xícara de chá e assistisse a noite cair. Que olhasse para as estrelas todas as noites com um pedido muito certo e definido; aquela que acredita sempre nas estrelas.
  Eu queria ser a que não tem noites difíceis, cujos dias são coloridos pelos desenhos dos corredores da escola infantil. Que a árvore torta de galhos inventados fizesse sombra aos raios que quisessem queimar a minha cabeça; que os arco-íris, os unicórnios, os sacis me possuíssem mais do que os medos que assombram os dias.

  Eu queria ser aquela cujas verdades não são inconvenientes, cujas palavras só acolhem e não desinquietam nunca.
  Eu queria ser a filha de Pedro, irmã de João, a protegida de Isaac. Mas na minha casa são as mulheres enlutadas que lutam.
  Eu queria ser aquela cuja direção não segue a rota da dúvida, queria ter a passagem exata; ser dona do tempo que se move para frente, mas sou mulher de Lot e volto os olhos para trás incontáveis vezes.

  Eu queria ser aquela que obedece aos avisos, que responde as cartas em tempo, que seleciona as melhores frutas no mercado, que não se alimenta de processados quando está demasiado triste.
  Eu queria ser a que bate os bolos de café e cacau com as mágoas, oferece tortas de maçã aos traidores, a que adoça ao redor e a si com os quitutes feitos na cozinha, cujos azulejos portugueses nunca se soltassem e o forno nunca ficasse desregulado.
  Eu queria ser aquela que tem as melhores mãos para o doméstico e o invisível: pregar botões, cerzir rasgos, tricotar pezinhos que ainda não chegaram, plantar roseiras e samambaias, alimentar pombos e filhotes de pássaroa que perderam as suas mães.

  Eu queria ser a que se levanta mais cedo e faz tranças, coques, rabos de cavalo com fitas de cetim, aquela que antes de dormir escova o cabelo cem vezes, cujos rituais de beleza são mantras de paciência e delicadeza.
  Eu queria ser aquela que separa os vestidos de verão dos casacos de inverno no guarda-roupas, a que aromatiza as gavetas e organiza a penteadeira e as dezenas de grampos - eu queria ter uma penteadeira.
  Eu queria levar mais as crianças aos parques floridos, mas os nossos parques estão sempre sujos, as crianças muito ocupadas e eu nem sei mais o endereço das crianças. Eu queria um cão que não fosse melancólico e um gato que não tivesse uma enfermidade renal.

  Eu queria ser aquela cujo amor chega sem arrastar o tapete, sem entortar os quadros da parede, sem modificar as estruturas da casa, sem sujar a louça, sem tirar os livros da ordem, sem trocar os vinis das capas e, ainda assim, ser o amor. E ainda assim é amor?
  Queria ser a Marília, o bucolismo, os suspiros entre as montanhas de Minas, mas não queria as angústias, as pressões, as propostas implícitas, os convites sem planos, os outros planos, os medos, o de quando entrarem pela porta e mudarem tudo, por exemplo. Ainda que eu vá abrir a porta, quando baterem.
  Eu queria o amor que combina, que chega no horário, que entende a minha língua; mas o amor vem estrangeiro, chega pela manhã, antes de eu acordar ou de madrugada, quando o porteiro já foi embora. O amor que me chega é incerto, um pouco surdo, mas me ama.

  Eu queria ser aquela outra. Organizada, sagaz, cujas afetações não se rompessem como barragens destruidoras, no meio da tarde de quarta-feira. Mas acontece que passamos tanto sem ter, sem podermos ser.
  A sinhazinha não me cabe; coube a bem poucas. E desconfio que nem elas foram felizes. As mulheres livres pagaram e pagam um preço altíssimo pela liberdade, que nos é negada sucessivas vezes e ceifada num golpe absurdo qualquer dia desses.
Eu queria poder ser aquela outra cuja insegurança ela ignora, cujas notícias passam em brancas nuvens, cujos jantares em pratos de porcelana e talheres de prata não causam culpa.

  O tempo, os bolos, as estrelas, os dias cheios de atividades delicadas, o cabelo trançado ao lado, os grampos e batons na penteadeira são das mulheres dos livros ou das donas das casas, onde as mulheres da minha família trabalharam. Não sou eu.
  Eu queria ser aquela protegida pela árvore inventada por mãos cheias de futuro da criança bem amada da sala de educação infantil; a mulher do amor e destino inventados; tão improváveis e bonitos quanto à árvore.
  Mas eu sou silêncio ou grito; sou a porção de minutos corridos, a bebida gelada do supermercado para enfrentar a insônia. As contas, as cobranças, os deveres que precisam ser cumpridos na data. O cabelo solto ou preso com uma caneta, os jantares com copos americanos e pratos da loja barata do Centro; sou a culpa por não ter mais para dar, a repetida sensação de não ser, estar, ter o suficiente para partilhar. Sou a luta contra os moinhos e a espera madrugada adentro pela mensagem que nem sempre chega.
  Eu sou a possível, a que cabe na moldura do meu espelho embaçado do banheiro, mesmo que eu queira quase sempre ver o outro reflexo; esse impossível.


4 comentários:

Bel disse...

você é aquela em que é maravilhosa!

Amanda Machado disse...

Sou aquela cercada por gente maravilhosa! <3

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 12 de Outubro de 2019

Querida Amanda,

Temos na língua pátria esta conjugação verbal, o Futuro do Pretérito do Indicativo. Valei-me Nossa Senhora Aparecida, por que a senhora não se manifestou assim diante do Arcanjo. Usou do imperativo.

O futuro do pretérito sempre se refere a um fato virtual (como assim? Fato ou virtual?) que poderia ter acontecido posteriormente a uma situação passada.Se a história for bem contada e conseguir convencer seu inconsciente, pluft - vira um Conto de Fadas com final feliz.

O Futuro do Pretérito fala sobre aquela dor que deixou rastros. Ao ser ressignificado por uma versão palatável aos olhos, ouvidos e sobretudo à alma, poderá abrir as portas do coração.

Um abraço!

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 14 de outubro de 2019

Querido Paulo,

o futuro do pretérito é o que poderia ter sido e não foi. É o tempo dos sonhos passados, das incertezas, da impossibilidade de mudar as escolhas. Mas é também o tempo para o exercício que pode ser melancólico ou prazeroso: imaginar o que teria sido, se fosse de outro modo, outra escolha.

Touchè! Você é quase sempre mais exato do que eu nas leituras daqui.

Abraços,
Amanda