sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Haverá um outro lado que ampare

  Dois. São assim desde que ele nasceu, acho. Eu não estive aqui desde o nascimento - cheguei
quando ele já saía de fralda na varanda e me abanava a mão - mas suspeito que tenha sido assim: os dois desde a chegada dele. Foram três, na casa, com o pai e depois quatro, com o cachorro, mas mesmo quando eram muitos no mesmo espaço, os dois eram mais os dois.
  Há entre os dois um idioma que os outros da casa não partilham, há silêncios entre eles que gritam na minha janela, há gestos sincronizados sem treino; parece um cordão umbilical nunca rompido, até agora ao menos.
 Esses dois frequentam mais o meu dia do que muitos outros dois, até mais do que a outra parte de algum dois do qual eu possa ser. Vou dormir com as risadas deles, com o prato de macarrão raspado por ele e a louça na pia que ela reclama de ter que lavar; e acordo com ela o chamando para a escola, jogando baldes de água na varanda e abrindo o portão para o cachorro, que dorme no quintal.

  Já fiz muito com as histórias deles: já servi quente na mesa do almoço de domingo, fui ouvinte atenta, ainda na cama num sábado, contei alguma situação doméstica deles como anedota para a irmã ao telefone e rimos, as duas, antes de dormir. Já achei inusitado, já julguei inadequado - porque sou falível - mas para o que mais as histórias dos dois têm servido é mesmo admirar a conexão que somos capazes de estabelecer.
  São dois desde o nascimento dele; são ainda mais os dois desde que o pai deixou a casa. Levou uma janela, que ainda não havia sido instalada, um sofá, cujas prestações ele ainda pagava e o carro negociado com a sogra; deixou os dois cuja linguagem ele nunca entendeu e não voltou. Às vezes o pai vem à rua para fazer pequenos serviços, mas não visita a casa. Falam muito dele os dois. Quando a mãe reprova algum comportamento do filho basta um "seu pai escrito" e o menino entende e o menino teme e o menino não faz mais.

  Ele foi embora com a janela, o sofá e o carro porque a paternidade é ainda negociável. Um dia deixa de voltar, de se ocupar daquele outro; um dia não vem mais, nem sabe de reunião na escola, nem da garganta que inflama, de um braço que precisa de gesso depois da queda, de um par de meias novas para as aulas de Educação Física; um dia desiste de fazer parte de algum dois ou três ou quatro. E pronto.
   A maternidade ainda não.
  A maternidade da casa ao lado, é aquela do tipo compulsória, naturalizada, estereotipada e normatizada. Ser mãe é, ser mãe não é. É ela a mãe e pronto. Não há janelas, sofás e carros que afastem ela dele; a responsabilidade pela vida que é ainda mais entrelaçada à sua à medida que o menino cresce.

  O cabelo amarelo dela ele não tem, a barriga proeminente e o macacão jeans dela ele também não tem. Mas a risada do filho é a mesma dela; a mágoa pela desistência do homem é parecida com a dela, as grandes esperanças em pequenas mudanças mora em ambos.
   A mulher mudou o corte do cabelo, passou a inventar outros amores e homens ideais que fossem diferentes do anterior - mas que acabam não sendo tanto - comprou um batom mais vivo e às vezes deixa algum currículo em alguma parte da cidade. Já o menino passou a desfazer das obras do pai na casa: derrubou uma parede, pintou outras, desmanchou a oficina dele e negociou os equipamentos - uns vendeu, outros doou.

  Agora, passam metade do tempo cumprindo com a obrigação da maternidade e da filiação: ele vai para a escola e diz que a ama no portão; ela faz o café e o espera à mesa para o almoço. Na outra metade do dia são os dois numa terra inventada por ambos: ouvem música eletrônica, sertanejo universitário e funk, às vezes. O filho ajuda com o inglês para ela legendar as fotos na rede social ou se comunicar com algum possível romance estrangeiro. Comem pastel às sextas e yakisoba aos domingos à noite.
  Aos sábados ela se arruma para os encontros e ele pergunta sobre os pretendentes, sobre o último quis saber se ele era marceneiro ou pedreiro, preferia o último, porque tinha mais utilidade na casa.
 - Aquela parede não está nivelada. Precisamos de um pedreiro bom.

  Enquanto ela sai, ele assiste à TV ou faz algum reparo na casa. Às vezes consegue fazer os dois, se ela demora. A mãe dela que mora na casa debaixo  se preocupa e logo vem saber mais informações sobre onde e com quem a filha está até aquela hora.
 - Não sei, vó. Mas ela vai perguntar se ele sabe levantar uma parede.
  Ele sabia e veio passar o domingo com os dois e o cão. Tomaram café juntos, conversaram e riram muito enquanto ela preparava o almoço. O homem tentou falar sobre futebol, mas o menino não assiste, não joga e nem torce, falaram de carros então. Depois do almoço eles lixaram uma das paredes e passaram massa e mais tarde,  tinta. Meu domingo foi cheio das histórias deles, da alegria deles, das esperanças deles.

  Uma semana depois e o homem do domingo não ligou mais. A mãe começou outra conversa com um outro; o menino comprou mais lixa porque acha que a parede ficou pior do que era antes.
  E seguem com a trilha sonora diversa, com a escola, o batom, o cachorro, a preocupação da avó e as risadas dos dois.
  Dessa vez o encontro é na quinta-feira, deixou o jantar pronto, abriu o portão para o cachorro fazer companhia ao menino e imaginei um beijo na testa do filho antes de sair, ouvi alguma frase meio sussurrada - embora ambos não sejam de sussurros - e o grito dele para ela na porta:
- Pergunta para ele se ele sabe levantar uma parede.
  São dois. Estão sempre sonhando, sorrindo e dividindo a mágoa de um abandono ainda latente e que se repete a cada romance que não prospera. São dois que me fazem sorrir, pensar, lamentar, torcer, que me fazem gostar mais deles a cada desilusão e beijo na testa.
  São dois que conspiram contra as lembranças da paternidade abandonada, que aspiram esperanças e que me inspiram a aprender a levantar paredes.
   São dois que não precisam de ninguém para construir paredes, são dois que se amparam, que sabem da dor, mas sabem muito mais sorrir. Ela é a mãe, ele é o filho. Sem janela, sem sofá, sem carro, sem pai; são dois e o cão. São dois, o cão e as esperanças que se acumulam nos móveis, nos tapetes, nas louças, nos livros, nas meias que ela compra para o filho, no armário do banheiro onde ela guarda o batom de cor viva. São dois - ele a parede dela, ela a parede dele - a casa que constroem diariamente parece se fortalecer a cada visita que não fica. Eles se têm e sabem. Haverá um outro lado que nos ampare sempre? Na casa deles, parece que sim.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Geraes, 10 de outubro de 2019

Prezada co-criadora do universo
Luzidia Amanda,

Procurei numa manhã destas uma definição para Futuro. O Passado tem dezenas de sinônimos, desde Pretérito até Obsoleto, cada um com seus objetivos. Mas, e o Futuro? Não tem nada igual. Amanhã? isto é futuro quando não se tem futuro? Li dia destes a tese aprovada por físicos australianos, através de processos controlados de Física Quântica, de que "O futuro é quem define o passado".

Achei fantástica a expressão. Pela primeira vez encontrei uma definição para o Futuro que se encaixa, por exemplo nas profecias, elas estão no futuro e definem o passado. Tudo isto ao estudarem o comportamento da luz. Caso a sua curiosidade quântica se sinta aguçada - eis aqui: https://www.sciencedaily.com/releases/2015/05/150527103110.htm

O fato é que somos passageiros desta imensa nave, rumando permanentemente ao futuro que já validou o passado, todos nós somos viajantes espaciais. Onde vai dar esta linha de raciocínio? preciso achar um gancho antes de virar um texto enorme.

Apesar d casal viajar na mesma nave, seu deslocamento depende diretamente, (E=mc²) da massa. Quanto mais se faz, quanto mai se constroi, quanto mais se edifica, mais luz nós somos e as sombras vão ficando para trás.

Somos todos passageiros da luz com tempos diferentes, assim o futuro deles já definira o passado, o menino, o cão a parede e a sogra. E ela tão devagar, insistindo em ficar refém da sua dor. O menino segue levantando paredes, tem foco, tem meta, tem destino. A mãe está perdendo o tempo da viagem cada vez mais está cada vez menos. E o menino cresceu e a mãe continuou buscando o futuro no passado.

Só viajando um pouco no seu texto.

Um grande abraço!

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 14 de outubro de 2019

Caro Paulo,
suas visitas são doces e generosas partilhas.
Que frase, que conceito! Lerei o artigo! Certamente me interessou muitíssimo.Porque isto é maravilhoso: "O futuro é quem define o passado". Exato! Essa oração diz tudo.

Nem li ainda e talvez nem tenha tanta afinidade com as minhas reflexões o tal artigo, com as perspectivas científicas que você trouxe. Mas essa frase é tudo! Pensar que o passado só é possível quando estamos em outro tempo e o que fazemos dele e com ele está também lá na frente, afastado do que vivemos hoje. Estamos vivendo o nosso possível passado hoje...e o que estamos fazendo com ele?


Sim, mãe e menino vivem em frequências diferentes, ainda que tenham tantas afinidades...e é possível que isso seja obra do tempo de cada um.

Enfim, amei mais uma vez a sua vista e o regalo que sempre traz quando vem. Grata sempre.
Abraços,
Amanda