sexta-feira, 25 de outubro de 2019

A corrente frouxa também enforca

   Os olhos do cão são conformados. Ou são os meus que veem os olhos dele assim; os meus olhos que projetam nos dele o que eu não tenho ou que identificam neles o que eu tenho nos meus. Tenho medo, agora, quando penso que eu e o cão talvez tenhamos um laço nunca percebido antes.
   Então olho inquisitiva para os olhos dele, de novo, tentando mais compreensão sobre mim do que sobre ele. E eles parecem mesmo serenos, pacíficos e melancolicamente conformados.
  - Conformado é o ser que aceita tudo o que a vida oferece. De qualquer jeito para ele é bom e mesmo quando não é, ele permanece sem fazer nada para mudar.
   Eu expliquei assim, na segunda-feira à tarde, e não era um texto sobre um cão, mas uma galinha.
  - Revoltado é o contrário do ser conformado; ele não aceita o que acha ruim ou injusto. Ele faz algo para sair da situação em que se encontra.
  Também expliquei, no mesmo texto da galinha.
   E agora esse cão, de olhos que parecem conformados; de novo o mesmo adjetivo.

  Esse cão que não é triste ou apático, ao contrário, é efusivo e agitado, tem gestos e voz escandalosa; latido e pulos bastante altos.
  Mas é um cão fisicamente limitado; um cão que é preso diariamente à uma coleira e esta à uma corrente longa jogada pelo chão da oficina, abrigada na garagem de uma casa, onde um marceneiro e dono da casa trabalha seis dias por semana.  

  O cão pode andar somente da porta de entrada até os fundos da oficina, se quiser, mas nunca se afasta muito do homem, que é dono da corrente e, por isso, dono das possibilidades do olhar canino. O homem se afasta quando quer, atravessa a calçada para conversar com alguém, vai ao supermercado na esquina da rua ao lado, sobe até à casa para descansar, comer ou tomar um banho no meio da tarde de verão, enquanto o cão aguarda, late e repousa seus olhos conformados em algum incauto transeunte; ontem era eu.
  O cão chega até a porta da oficina a cada cliente, vizinho, vendedor, carteiro ou qualquer pessoa que se aproxime da calçada, cujo início ele alcança, ainda que preso. Ele late, cheira, às vezes pula, mas logo o marceneiro volta a ser o seu único afeto e contato e, então, ele permanece sempre.

  O dono dá metros de liberdade, porque a corrente parece bastante longa, e ele cativo em poucos centímetros. Talvez conseguisse chegar até o final da calçada, mas se limita entre o balcão de trabalho do homem até a entrada da oficina.
  O homem pega uma outra faixa de madeira e o cão observa. Parece aprendiz  de um ofício do qual jamais será herdeiro; talvez até acompanhe algum, mas assumir a função não vai. Por isso a natureza limitada desse cão de marcenaria me parece melancólica; nunca chegará a ser o que poderia, nunca chegará a alcançar inclusive aquilo que lhe dão - mais rua, mais espaços.

  Um cão que não sabe o máximo que a corrente pode esticar, um cão que se impõe limites ainda mais rigorosos que aqueles do próprio dono. Um cão que se acostuma a ser um cão de alguns poucos metros quadrados, de cheiro forte de madeira, espectador de brincadeiras de crianças, um cão que se satisfaz com as mãos desanimadas do seu senhor, uma vez a cada hora, sobre a sua cabeça. Um cão que é amoroso e recebe o que dão para ele; sem revoltas. Que recebe aquele tipo de amor que conhecemos bem, quando fora da ilha; que não é para ser o seu, porque o mantém debaixo de um balcão, atado a uma coleira sempre nova e às correntes que ganham metros, mas que ele nunca experimenta alargar.

  Esse amor que não é para ser. Porque é um amor apertado, limitado, um amor que só sabe dos carros que passam pela rua estreita, das pernas que se aproximam muito da oficina, dos cheiros e sons do entorno de sempre.
 Esse amor que não é. Porque é um amor que nem promete liberdade; é um amor sem promessas, um amor na materialidade do barulho da serra, no pó da madeira, nos sapatos de fregueses e nos pequenos chutes infantis.
  Que não inventa, não cria, não oferece poesia. Não conta histórias sobre arco-íris, não mostra imagens de bosques encantados. É o amor pragmático da tigela com ração ao lado do pote com água e um afago na cabeça, com a mão meio mole, também conformada num gesto.

  Esse amor que não escuta os latidos mais genuínos, porque os ouvidos se prendem às lixas e às tábuas que serão algum móvel, um dia. Esse amor que olha e não enxerga os olhos conformados deste cão. Esse amor que  arrasta uma corrente, cujo barulho parece de um guizo alegre, mas logo vai ocupar a rua com um som aterrador de falsa alegria. Nada mais triste do que a tentativa frustrada de  ser alegre e não conseguir.

 Esse amor que faz o cão ter esses olhos que pousaram sobre mim e me interrogaram sobre o que aceitar e ao que reagir. Esse cão, de olhos conformados, de alegria tão canina, tão afetuosa em qualquer situação.
  Esse cão cuja corrente não aperta, mas não conhece um amor que o quer livre. Se só esse é o amor possível, que seja feita vossa revolta.
  Conformar não é amar; mãos moles na cabeça, uma vez a cada hora, não fazem do cão amado; mas disso talvez ele nem saiba. A doçura do cão merece promessas; o cão não sabe que a esperança incorporada ao amor é o que faz a vida mais saborosa; água e ração são apenas sobrevivência.
  Enquanto eu penso no cão, ele ainda assiste à madeira. Os metros de corrente podem se multiplicar, mas ele não sabe de liberdade, de amplitude de vida, de outros cheiros lá fora ou de como ir embora quando a oferta é só sobrevivência.
  O cão conformado; amor é querer mais; amor é revoltar-se.



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