quarta-feira, 16 de outubro de 2019

Com a delicadeza de uma gueixa, com a coragem de uma guerreira

   Com os passos cuidadosos de uma mãe que acaba de fazer o filho dormir e de colocá-lo amorosamente na cama, eu vou deixar o quarto  e a nossa história por todas as próximas noites. Vou deixar a janela entreaberta para refrescar o ar, o lençol eu vou dobrá-lo em cima do seu corpo para que não sinta frio e fecharei a porta sem bater nem olhar para trás; porque não é mais o meu caminho.
  Com os passos de uma bailarina experiente, que trazem incomensurável esforço, mas refletem inefável leveza eu vou deixar o palco antes dos aplausos finais, porque eu não quero chorar, prefiro levar o melhor do espetáculo na memória.

  Como uma vigia de museu eu vou guardar o que é precioso, ainda que não seja meu, a salvo dos ladrões, dos depredadores, dos ignorantes, dos inescrupulosos e dos infelizes que desejam destruir legados. Vou ser vigilante de uma história na qual eu nem me reconheço, mas que do valor eu sei.
  Vou proteger passados e memórias porque sei que deles são feitos o presente e o futuro. Vou ser guardiã precisa dos tempos imprecisos.

  Com a destreza de uma equilibrista na corda bamba, eu vou deixar a sua rua, os seus amigos, as promessas sob o sol, os sonhos de confusões de linhas de tricô no cesto, de mangueiras soltas no jardim, de brinquedos quebrados no quintal, de passeios com os cães que não tivemos - o Sputinik e o Morse - e o seu país, não sem dor, mas sem arrependimentos pelo esforço e dedicação que me trouxeram até eles.
  Com os movimentos de uma nadadora determinada eu vou atravessar o córrego, o rio, vou do mar alto até o ancoradouro, vou atravessar o oceano, sem ter uma lágrima pública. Vou chorar a viagem inteira, até as lágrimas se confundirem com as águas ora profundas, ora rasas e me recuperar do outro lado. Porque é assim que eu aprendi com Cecília, que aprendeu com as primaveras, deixar-me cortar e voltar sempre inteira.

  Com os gestos de um dançarino de butô eu vou expressar todo o meu drama em lentos e suaves passos, não darei um grito, não pedirei chance de nada, não apontarei sua covardia; todos somos um dia. 
  Eu vou dançar as sombras, porque elas também são a vida; eu vou dançar até esquecer a dor de tentar esquecê-lo; vou dançar até o meu corpo estar de volta inteiro meu de novo. Eu vou dançar até o meus braços se esquecerem da sua cintura, até as minhas mãos não procurarem mais as suas, até os meus olhos não insistirem em encontrem a sua nuca, até a minha boca falar outro nome ou silenciar satisfeita.
  Eu vou me entregar completamente à dança até não sentir mais o vazio da despedida, da desistência, da desilusão, do desencanto e do desencontro. Vou dançar até saber que não esquecê-lo não vai doer um dia. Vou dançar até a dor sair por cada poro e me deixar mais liberta do meu sentimento por você.  Eu vou dançar até não me sentir doente, rejeitada e enganada. Vou dançar até entender que a minha força também conhece as contrariedades.

  Como uma bruxa ancestral eu vou me curar no meio da floresta, rodeada por outras mulheres e fogo. Vou encontrar a paz por não ter me escondido, me omitido e me guardado para certeza nenhuma.
  Como num feitiço, numa mágica, depois dos cânticos, dos chás, dos banhos e oferendas meu coração terá aceitado a passagem.
  Depois de ter lavado as mágoas, com as mãos das minhas irmãs, eu não apontarei culpados, nós não faremos vudus, nem proferiremos pragas, mas desejaremos bem-aventurança, prosperidade e ventos de coragem a nós e aos seus.

  Como uma educadora anciã eu não farei listas de defeitos, de falhas, de notas vermelhas, não colocarei o seu nome em evidência em um quadro negro ou castigarei os seu modos aparentemente tão desrespeitosos. Vou passar sutilmente entre as carteiras e apenas com um olhar expressar o que é preciso; você entenderá, todos os outros entenderão.
  Eu não farei discursos morais, não lançarei mão das ameaças de punição com descontos em notas, proibição de recreio ou mudança de carteira em sala.
  Eu vou levar poesia na despedida, eu não vou chorar no último verso e vou desejar um feliz crescimento a todos.

  Com a delicadeza da gueixa que eu não sou, mas a quem recorro quando tudo parece desmoronar, deixo a minha esperança de reencontro, a minha desilusão romântica e a minha disponibilidade de entrega no muro baixo da casa cinza na rua das Flores número trezentos e levo a minha coragem de amar para quantos outros lados de oceanos forem possíveis.  
  Com a coragem de uma guerreira eu digito Adeus na minha alma, enquanto entro no avião e aperto o enviar. Eu terei me afogado do outro lado da margem e voltarei como se não tivesse nem molhado os pés ao chegar deste; porque é o meu segredo guardado, a minha lembrança de ser forte com ternura. Fecho a porta como uma mãe que deseja que o filho finalmente aprenda a sonhar em paz.




                                                                                                    

2 comentários:

Kellen disse...

Eu já li duas vezes em momentos diferentes e não sei o que dizer ❤️

Amanda Machado disse...

Que linda! Que tenha sido boa a leitura, em ambas as vezes ou em pelo menos uma...