
Um das ruas é amor recente foi conquista dura, sedução desavisada. Começamos com o desafio da sua subida escarpada, que no verão é absurdamente infinita. Mas eu gosto de caminhos que não são planos, gosto de itinerários pouco retos.
A rua recente tem alguns jardins, mas muitas casas com a área externa cimentada, numa delas dois guarda-chuvas protegem do sol duas plantas em vasos de cerâmica. Parecem duas senhoras em uma conversa sem fim, as quais eu cumprimento diariamente com um aceno de cabeça. Estão sempre a conversar sobre a vida, imagino que falam do passado, dos vizinhos e dos preços absurdos no supermercado; as senhoras-plantas eram as personagens mais recorrentes nas minhas subidas desafiadoras, até que eu vi o homem do livro pela primeira vez.
Do outro lado da rua, um pouco acima do prédio dos guarda-chuvas eu passei pela calçada que ele varria no começo da noite, há alguns meses. Por pouco não varreu o meu pé, desviei, ele não pediu desculpas, pareceu nem me ver e só nos encontramos novamente no dia seguinte e depois no outro e no outro.
O homem mora em uma casa, construída recentemente - ou será que eu é que só notei recentemente? - em uma das garagens de um prédio antigo. Com somente quatro apartamentos, as garagens do prédio ficam no térreo, na altura da rua e numa delas levantaram paredes, colocaram uma porta e uma janela que ficam bem próximas à calçada.
A porta de alumínio com um vidro no meio tem uma cortininha da mesma cor da cortina da janela; é a proteção da intimidade do homem e ao mesmo tempo a delicadeza doméstica que dá à casa a cara de casa. Porta e janela são vulneráveis, porque ficam rentes à calçada, mas ao mesmo tempo são protegidas por esse pudor verde-água esvoaçante das cortinas.
O homem que deixa a porta aberta e se senta na calçada depois de varrê-la diariamente no final da tarde não tem nome, idade ou voz conhecidos por mim, mas é quem eu mais tenho observado nos últimos meses, desde que eu passei um pouco mais tarde pela rua e o vi se sentar com o seu livro na calçada recém varrida. Ele deixou a porta aberta e ajeitou a calça, antes de se sentar na direção dela. Segurava um livro de capa azul e o abria contente logo após se instalar na calçada da rua, iluminada, com uma paisagem noturna brilhante e colorida à sua frente, já que do alto da rua íngreme a visão é mesmo privilegiada.
Mas enquanto eu olho para ele e penso na alegria que é poder ter sob os olhos uma faixa tão bonita de cidade, ele mergulha nas páginas do livro de capa azul e eu o invejo duplamente: pela paisagem visual e pela leitura ao final do dia.
Enquanto ele lê, eu volto para casa sentindo um cansaço longo, uma melancolia saída não sei de onde, um desejo de coisa que eu não sei o nome, onde fica ou de que substância é feita; uma ausência de acolhimento, uma superexposição à palavra vazia, aos gritos-mudos, às mãos fechadas e portas de madeira sem cortininhas.
Na página do livro dele um traço discreto, uma palavra solta no meio da frase longa, um signo que ninguém traduz, uma seta, um sinal que não se sabe de quê ou para quem; não o perturbam. E ele não se esforça, não espreme os olhos ou boceja de sono quando vira as páginas; ele só lê e parece descansar em cada linha. O vento da noite balança as cortinas da sua casa, porque a porta está aberta, sacode um pouco as páginas que ele segura, porque a sua sala de leitura é a rua e ele é a imagem feliz que eu busco todo final de tarde.
Tenho duas ruas e uma avenida nesse mundo inteiro, numa das minhas ruas, tem uma casa na garagem e um homem na casa, que usa a calçada como varanda. Tenho me inspirado na calma dele, na plenitude de uma leitura ao ar livre, na calçada varrida, nas cortinas que protegem a sua intimidade e porque ele tem tanto em algo que parece tão pouco. E eu que sempre quis o simples, tenho achado que complico demais e me esqueço do que já tenho.
Um desconhecido tem me feito ver a vida com a doçura que eu procuro nos conhecidos. Não é tarde demais quando eu saio do trabalho, meu cansaço tem a cura na imagem dele, nas invenções que eu semeio pela rua e nos livros dele e meu.
Um homem, possivelmente, com ondas dentro e que só ecoa mansidão de remanso tem me mostrado que eu posso me sentar com o contentamento, depois de abrir a porta, ajeitar a calça e respirar - porque é a vida que convoca os pulmões.
Caibo em qualquer quarto, canto, calçada. Com um livro nada é limitado, pequeno ou demasiado ausente.
Ao final do dia, temos o jardim que decidimos cuidar: ou o de terra vermelha e flores coloridas regadas ou em chão cimentado com plantas-senhoras, debaixo do guarda-chuva ou um jardim de palavras com desconhecidos transeuntes que testemunham e ajudam a plantar memórias.
O jardim que me habita é feito de tortuosos e escarpados caminhos, curiosidades ordinárias e seres que me ensinam a gostar das minhas flores. Ao final do dia, tenho aprendido a ser grata mesmo à minha melancolia, porque ela também faz parte da vegetação que eu escolhi cuidar.
2 comentários:
Minas Geraes, 31 outubro deste assombroso ano das bruxas
Adoro passear nestas vielas, becos,ladeiras e avenidas que você traduz, feito luz que ilumina nosso dia.
Um abraço!
Paulo
Minas Gerais, 01 de novembro - outros outubros virão -,desse apocalíptico 2019
O mundo lá fora anda em um descompasso triste e num tempo mais acelerado do que eu gostaria, mas você ainda me presenteia com a presença e o aceno sempre muito terno.
Obrigada!
PS: tenho ido ao reino, mas tenho feito a deselegância de não me anunciar...continue...é muito bom ter onde passear.
Postar um comentário