sexta-feira, 1 de novembro de 2019

No dia da poesia, eu não quero ler nos jornais o meu medo

  No dia da poesia, não quero ser despertada pelo telejornal da TV do vizinho, queria mesmo era pássaro amarelo na beira da janela, mas na impossibilidade de um, basta ouvir as crianças do apartamento de cima, fazendo perguntas para mãe enquanto descem as escadas para irem à escola. A infância é perguntar, a maternidade é não ter respostas. No dia da poesia, eu quero ser pergunta sem resposta.
  No dia da poesia, eu quero um pedaço de bolo feito em casa, na tarde do dia anterior, não quero pão de sal, cereais industrializados ou saída apressada em jejum. Quero comer com satisfação, me sentar à mesa, colocar o bolo, o bule e a minha xícara favorita. Quero comer passado, ser saciada por minhas memórias: a mãe fervendo o leite, o pai fazendo o café, a avó fumando cigarro de palha e o avô chamando o cão para levarem as vacas para o pasto. Vou assistir aos quatro, enquanto o café esfria na xícara.

  No dia da poesia, eu quero ficar mais calada, ficar amiga do silêncio e só atender às chamadas que não sejam urgentes. Não quero falar sobre o preço do gás, a taxa de desemprego, os índices de violência contra mulheres e crianças, sobre a minha insegurança, o meu ciúme que me envergonha ou o meu problema nas cordas vocais (que na verdade são pregas, mas eu prefiro cordas).
  No dia da poesia eu não quero exagerar, mas não quero ser mais comedida; quero estabelecer a minha própria medida; ser dona única do meu limite. Nem alta nem baixa; nem pesada nem leve; nem passiva nem ansiosa; nem curta nem longa; nem longe nem do lado; nem fim nem enfadonha. Eu quero andar de bicicleta sem rodinhas, cavalo alado, tapete mágico sem cinto de segurança ou entrar no ônibus e ganhar o bom-dia do motorista e do cobrador; também me bastam.

  No dia da poesia, eu quero andar sem temer, eu quero nadar sem cronômetro, eu quero esquecer os quilômetros no relógio, enquanto eu correr. Eu não quero andar só pela calçada, eu quero subir gramados, inventar desvios, desafiar automóveis.
  No dia da poesia, eu não quero ter hora para voltar, quero invadir a noite sem ser perseguida, sem me sentir culpada, constrangida ou em constante sobressalto. Eu quero a tranquilidade de um verso livre, sem ter que caber em rimas e poder escolher qualquer rua da cidade.

  No dia da poesia, eu não quero ler contratos, boletos, promessas em cartório; eu quero olhos com verdade, confissões de amor ou arrependimento, sem as palavras vazias de sentido que jorram de tantas bocas. No dia da poesia, eu quero três sonetos: um que liberte e seja livre, outro que ame e não pergunte se é amado e o terceiro que nos faça querer ficar.
  No dia da poesia, eu quero ler nas mãos que me estendem a proteção que eu não tenho no meu apartamento com três fechaduras, um alarme e as câmeras de segurança do prédio. Eu quero que o meu coração seja acalentado de esperança que não espera, porque já é o agora vestido com um paletó verde.

  No dia da poesia, eu não terei  notícias de acertos de contas, cobranças de dívidas, quitação de dúvidas, repetições de desumanidades ou violações do direito de ser.
  No dia da poesia, eu não serei polícia, político ou perita em mentiras; quero me aproximar dos padeiros, dos pedreiros, dos pastores de cabras, quero me apaixonar por quem constrói, alimenta e cuida.
  No dia da poesia, eu quero sonhar para além da cama, do quarto, da infância e das férias; quero estender a toalha xadrez nas mesas cinzas e compartilhar sanduíches, desejos, frutas e futuro.

  No dia da poesia, eu não vou contar o tempo pelos minutos correntes, vou dividi-lo em tercetos e quartetos; vou transbordar sentidos, envoltos em palavras, das linhas da folha e ocupar as praças, os corredores, os pátios, as filas do banco, as vitrines das padarias, as cadeiras das manicures, os elevadores dos prédios de escritórios. No dia da poesia, vou libertá-la das bibliotecas, das gavetas dos criados-mudos, dos quadros escolares que a exibem sem mostrá-la.
 No dia da poesia, vou restaurar o que se quebrou há um ano, vou encher meus pulmões de coragem, grito e esvaziar a indignação que rouba a minha força.

  No dia da poesia, eu não quero ler nos jornais o meu medo, eu não quero ver no espelho a minha covardia. Eu quero ter paz, bolo, memórias, liberdade, mas eu quero, sobretudo, ler nas ruas os sonetos de esperança, dignidade e ventura.
  No dia da poesia, deito com a lua nova lá fora e eu fechada com a minha ilusão de segurança aqui dentro, só  querendo ser cheia e ser da lua e de luta.
  Na noite do dia da poesia, enquanto me arrumo para deitar, sinto o cheiro de colônia de rosas do poeta Carlos ou da minha mãe, no banheiro, eu já nem sei. Mas ambos me inspiram para acordar e enfrentar o  dia que não será mais só o da poesia.
- "Essa ferida, meu bem, às vezes não sara nunca, às vezes sara amanhã".
  O poeta me consola e vela o meu sono intranquilo de quem não sossega e também é gauche na vida.




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