segunda-feira, 11 de novembro de 2019

Faltou a última estrofe da loucura de Ismália

  Quando Ismália enlouqueceu, virou poesia porque cantava e sonhava no alto de uma torre. Ismália
do mar e Ismália do céu, banhando-se de luar, desejando as ondas e morando em rimas que faziam a sua loucura parecer lirismo. Mas quando a mulher de cabelos curtos, que cruzou o meu caminho no domingo, enlouqueceu não teve poesia que acolhesse as suas angústias.

  Quando Ismália enlouqueceu,  suspiros e delírios ritmados do alto da torre atraíram curiosos e depois, admiradores da sua loucura bonita e translúcida. Pediram Ismália em casamento, enviaram-lhe ramalhetes de flores, dedicaram-lhe músicas, poemas e retratos. Mas quando a mulher de cabelos curtos, que transitava pela avenida nesta manhã, enlouqueceu correram quase todos dos seus gritos e os que ficaram, silenciaram sua voz com pílulas que sufocavam a sua alma.

  Ismália enlouqueceu cantando, a mulher na rua endoideceu gritando. Ismália cumpriu o seu destino sonhado de partir um pouco para o céu, com as asas que nasceu no poema e um pouco para o mar, com as nadadeiras que eu inventei para ela. Quanto à mulher desta manhã, ficou exposta na rua, foi entregue aos olhares, aos medos que temos dela e ela de nós; não consegui dar nada a ela ainda.
  Quando a mulher-poesia enlouqueceu gestos delicados de bailarina ganharam a imaginação de quem só sabia dela pelas canções que ouviam do alto da torre. Quando a mulher da rua enlouqueceu, sua fúria ninja, armada com uma sombrinha, ameaçou a segurança dos transeuntes.
 
 Ismália enlouqueceu por um amor impossível e platônico; ou por um amado que adoeceu dos pulmões e deixou Ismália no altar; loucura típica: enlouqueceu de tristeza muito moça, a Ismália.
  Quando a mulher da rua perdeu o juízo e começou a lançar injúrias a desconhecidos, procuraram no seu sangue vestígios de alucinógeno. Mas nem a loucura de Ismália nem a da mulher, aceitam caixas e limitadas descrições. 
  Loucura nenhuma cabe, loucura transborda. É uma letra que não aceitou a pauta, escorregou da folha e escrita alguma consegue segurar.

  Quando Ismália enlouqueceu, marinheiros e aviadores ofereceram-se para passeios terapêuticos, quando a mulher de moletom perdeu a razão, o ex-marido veio buscar o filho e o cão, os vizinhos já não entravam no elevador em que ela estava e a irmã deixou debaixo da porta o endereço de uma igreja.
  Quando Ismália já não dizia coisa com coisa, decretaram póiesis aguda; não fazia mal a ninguém, não ofendia tradição alguma e também não desrespeitava às leis, foi colocada numa torre bem alta em frente ao mar, para ficar mais perto dos seus sonhos de louca.  
  Mas quando a mulher da rua começou a não estar mais satisfeita ou sorridente ou disponível ou maternal ou vaidosa, passaram a vigiar seus gestos desalinhados: gritos, reclamações, revoltas públicas e inimigos invisíveis. Prescreveram calmantes, excitantes, atividade física e repouso, mas ninguém a convidou para um passeio. Quixotesca ela lutava contra inimigos invisíveis, mas completamente existentes. 

  Quando Ismália fugiu da razão comum acharam-na especial e artística, deram torre, céu e mar, deram à Ismália a tranquilidade para continuar a sonhar. Então Ismália trançava os próprios cabelos, contemplava a paisagem, recordava-se das suas canções favoritas e passava o dia numa loucura calma.
  Quando a mulher de cabelo curto e tênis amarelo descumpriu as primeiras normas, deram afastamento e sermões; depois, quarto, papel e memória em branco para ela. Contra o governo não podia ser, contra deus tampouco, o ex-marido era um exemplo de homem de bem, os bancos não cobravam taxas abusivas e para ser mãe bastava amar.
 
  A loucura de Ismália vira poesia porque é distante, sem necessidade de internação ou terapia. A loucura de Ismália não aplaude discursos políticos, tampouco desconfia deles. A loucura de Ismália não faz barulho, não contraria opiniões.
 A loucura da mulher que eu encontrei por duas vezes, nesta manhã, incomoda, tira do lugar, faz perguntas e faz pensar; a loucura também é política.
  Querem que sejamos Ismália, caladas, bonitas e um pouco loucas, mas somos a mulher de cabelos curtos que tememos. O que ninguém soube é que na última estrofe do poema de Ismália ela desiste de voar até o céu ou de nadar infinitamente pelo mar, devolve seus regalos para os antigos admiradores e desce as escadas da torre gritando bem alto por liberdade. Quando Ismália enlouqueceu, partiu do poema e a sua loucura foi ser livre numa crônica.