quinta-feira, 21 de novembro de 2019

Inventaremos um mundo onde eu, você e o nosso amor não morremos

  Depois da fuga, não vamos olhar mais para trás. Não enquanto fugimos, meu amor. Talvez dure uma semana, alguns meses, muitas décadas ou a vida inteira, mas não lamentarmos o que deixamos é a condição  para seguirmos em busca de outro lugar que acolha o que somos agora.
  Escreve ao seu irmão e peça-o para cuidar das plantas, levar a sua mãe ao médico e recolher os jornais de todos os dias da porta da frente.
  Vou deixar um bilhete aos meus primos e pedir para que fiquem com a parte da minha herança; nunca quis nada mesmo. Vou apagar os áudios, os vídeos, as mensagens que me emocionam demais, para abrir espaço para memória e para eu resistir às lembranças que tentarão me segurar.

  Vou pagar a costureira, solicitar na empresa de energia a interrupção dos serviços, levar os últimos exames ao médico e distribuir os livros que eu não poderei levar; estou fazendo agora as dedicatórias que eu acumulei a vida inteira: da amiga de infância, da filha do porteiro, da amiga com quem eu nunca mais falei, desde as eleições,  do amor que não é mais meu, do novo amor do amor que não é mais meu, das duas colegas de trabalho, da secretária do dentista, de três ex-alunas, da minha irmã, das minhas sobrinhas e a do meu pai, que eu comecei há mais de duas décadas e acho que ainda não termino dessa vez.

  Vou abastecer o carro e ir ao supermercado buscar suprimentos para a nossa fuga: algum queijo, umas duas garrafas de um vinho bom, uma barraca de camping, um hidratante para as mãos, uma cartela de comprimidos para dor de cabeça, fio dental e repelente. Enquanto isso, recolha as últimas roupas do varal, lave o cabelo, faça a barba, prepare as nossas roupas, não se esqueça das toalhas de banho e uma de mesa, para quem sabe fazermos alguns piqueniques pela estrada, tira a mala do alto do guarda-roupa e tente não abrir as caixas de fotos, de memórias que levamos até agora conosco; elas podem querer te seduzir a desistir de ir.
  Não mexa nos enfeites da árvore de natal guardados, nos seus bonecos de criança, nem nos suéteres que a sua avó tricotou para você e que nunca mais você vai usar, mas também não consegue não tê-los nas suas gavetas.

  Recolha e leve para fora o lixo, as notícias, a política de medo, as censuras, as mazelas com a arte e com a gente. Deixe do lado de fora as mágoas e os nossos fracassos, individuais, românticos e coletivos. Abafe no fundo de alguma caixa dessas de papelão a nossa ingenuidade de mundo tranquilo, de justiça e de humanidade. Mas deixe o Paulo Freire, Neruda e Florbela em cima da mesa da sala porque eu levarei-os na nossa empreitada; de alguma esperança e beleza teremos que nos alimentar.
  Avise ao homem do gás, ao pintor das nossas paredes, ao carteiro, ao porteiro, ao síndico, aos oficiais de justiça, que batem a nossa porta duas vezes por ano em busca  do vizinho que se mudou há trinta e seis meses, que vamos ficar fora por um tempo - não diga que é para sempre, porque essa gente nunca acredita em tempos definitivos

  Despeça-se dos seus amigos, se achar conveniente; da minha parte, prefiro mandar cartões-postais depois de uma distância mais segura. Nunca fugi antes, não sei dar abraços com validade estendida, não sei olhar para um rosto amigo e não me despedaçar em choro e arrependimento, não sei ir embora sem querer que me acompanhem.
  Tranque as portas do apartamento e deixe-as na imobiliária, destranque a varanda e deixe o gato do vizinho subir mais vezes pela nossa sacada, desfaça do que puder e do que não puder tente fazer caber numa mala só, não podemos fugir com muita bagagem, precisamos correr mais soltos, precisamos aprender a carregar só o nosso próprio peso para daqui em diante sermos mais nós mesmos.
  Vou na ioga para meditar com esse grupo pela última vez, vou inspirar e expirar bem forte pelas narinas, enchendo os meus pulmões de todo ar dessa cidade e devolvendo-o um pouco contaminado pela minha energia.

  Se puder, esfregue os ladrilhos da cozinha pela última vez, deixe-os brilhantes e guarde a louça que eu já lavei antes de sair, se puder, deixe a pia limpa, como se  preparássemos a casa para um retorno breve.
  Arrume os lençóis na cama, estique-os como uma camareira de um hotel cinco estrelas, só não precisa da escultura com as toalhas. Perfume nossa cabeceira, jogue fora a água da fonte oriental do meu criado-mudo e deixe as cortinas fechadas.
 Abandonaremos a casa arrumada, simularemos os vestígios de uma vida organizada e feliz, pois quando arqueólogos investigarem o que fomos, acreditarão em uma civilização tranquila, ordeira e pacífica. Vamos enganar a história, as ciências, os psicólogos, os astrólogos que preveem vida curta ao nosso amor. Vamos enganar estatísticas, derrubar as previsões, as conjecturas, as críticas, as evidências inconscientes. Vamos viver mais de duzentos anos, vamos fazer nosso amor durar para além de nós.

  Se puder, acenda um candeeiro e venha buscar a minha alma intranquila na garagem, cozinhamos pinhões, descascamos e comemos, depois que eu voltar do trabalho.
  Eu não sei amar nesse mundo, mas o que temos é, ainda, este. Se o seu irmão não puder vir regar as plantas, ficaremos mais um pouco e aprenderemos a esperar pelos outros mundos onde o nosso amor poderá durar.
  Eu lavo os pratos e você a panela de pressão, depois vamos dormir, porque acordo cedo amanhã; eu acabei protelando a minha demissão. Na nossa cama desarrumada, inventaremos a nossa própria civilização; até conseguirmos deixar este mundo e, finalmente, vivermos o nosso.
 





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