segunda-feira, 9 de dezembro de 2019

A vida invisível dos amores que não são fotogênicos

   Quando ela deita a cabeça prateada no ombro dele, eu quase choro de tanta ternura. Eu me lembro de deitar assim e de ser olhada de um jeito parecido. Embora enquanto eu estivesse com a cabeça no tal ombro eu não pudesse ver o rosto, eu sempre estive certa de ser olhada  e, acho, que era desse jeito que eu posso ver agora. Às vezes isso é possível: se assistir, dar-se conta exatamente do segundo de felicidade ou da plenitude de um gesto tão invisível aos outros; viver o segundo da eternidade, do improvável milésimo cravado na memória.
  Enquanto ela se acomoda, procurando uma melhor posição para cabeça, tentando evitar que os fios de cabelo dela invadam a boca e as narinas dele, ele só abre o peito e nitidamente, ao menos para mim, ele se expande para abrigá-la. Eu sinto, embora não consiga ouvir, os dois suspiros se cruzando e acenando para o começo do filme. É uma das cenas mais bonitas que eu tenho na minha noite.

   Eles são um casal de idosos, estão no cinema. Última sessão de sábado, escolhem um filme com poucos espectadores - duas horas de narrativa fílmica - e, antes da cabeça dela encontrar o ombro dele, organizaram sacolas, pipoca, água com gás, ele desligou o celular e ela prendeu os seus cabelos brancos. Tão bonitos; ela, os cabelos, ele e o seu peito mais aberto que Baía de Guanabara.
  Eu assisto ao filme com interesse e sou afetada por ele a  cada frame, porque ele é para mim. Mas além da tela tem o casal e a dinâmica do afeto deles; tão discreto e ao mesmo tempo tão público. Assisto à tela e ao afeto do casal ao lado com o mesmo interesse: o de sair de mim e encontrar o outro, o de sair de mim e me encontrar no outro, o de de estar em mim e encontrar a mim e ao outro.

  Na tela, uma sequência de encontros desafortunados, destinos atravessados por decisões que fracassam, de desencontros, mas também de descobertas, lembranças e pequenos gestos prósperos. Na mesma fileira que a  minha, a calmaria absoluta da segurança no afeto e na intimidade; que também já deve ter sido, e ser diariamente, abalada por alguma gota, cisco, pedra ou tempestade, até que as suas águas encontrem sossego novamente.
  No escuro do cinema, o amor invisível de tanta gente; o amor não capitalizado por propagandas de  margarina, sabão em pó, perfume ou carro. O amor que não é proibido pelas igrejas, mas também não é iluminado pelos holofotes.

  Há tantas belezas nesse amor maduro e em profusas outras amorosidades cotidianas que ele nem tem que ser bonito esteticamente aos outros. Há tanta alegria no amor que ele nem precisa sorrir o tempo todo, ele pode inclusive florescer entre as tristezas que não precisamos esconder, se há amor.
  Há tanta generosidade no amor, que eu o sinto daqui, mesmo na distância de três cadeiras de cinema, o afago, a afeição, o desejo, a partilha, o calor. E é por isso que eles são tão bonitos e admiráveis; porque no escuro apontam um jeito de vida, sem querer ser modelo.

  Logo o filme requisita ainda mais da minha emoção, deixo o casal por alguns minutos e me desespero com a protagonista, sinto a dor do afastamento de uma irmã, da mentira, da prisão que é moral dos outros, da desumanidade que é incompreensão das falhas dos outros, dos tempos, das imprecisões de que é feita a vida.
  Desconsolada, procuro pelo casal de novo - meu colete alaranjado no naufrágio - abraçados, também choram. Ele passa a mão nos cabelos dela, cuja cabeça se afunda ainda mais no ombro dele e ela parece apertar a mão dele, porque contrai o braço; não sou capaz de ver cada detalhe dos gestos no escuro da sala, mas posso imaginar como se encadeiam suaves e ternos.

  Há tantas lealdades no amor, que a verdade é relativa e pode ser construída em conjunto, em acordo, em proximidade de perspectivas ou, ao menos, tentativa disto. Há tanta disponibilidade no amor, que a  janela mínima acolhe mais do que dois pares de olhos e cotovelos, se desejarem contemplar a mesma paisagem. Há tanta proximidade no amor, que a Grécia não é estranha e que Viena é sempre possível em algum tempo; se existe esperança.
  Há tanta coragem no amor que a infelicidade alheia de quem não o compreende, não consegue penetrar nas suas tramas, tão firmes e seguras nem apodrecer os laços.
  Eles se amam há não sei quanto tempo, desde muito ou há pouco; eles se viram em alguma praça de Minas, em alguma avenida de São Paulo ou em um quiosque numa praia do Rio; não sei nada. Mas durante duas horas se amaram e se declararam para sempre. Amam o que já têm, com o amor que sabem ter.

  O filme acaba, as luzes se acendem. Enquanto eu enxugo as minhas lágrimas e recolho o meu lixo, eles permanecem abraçados; o cabelo dela ainda controlado, o peito dele expandido. A protagonista da tela só conhece sua própria história no fim. Nós também não conhecemos o nosso enredo até irmos muito em frente nas nossas cenas.
  Mas o nosso tempo já está escrito naquele livro que nunca calha de encontrarmos nos sebos. Um amigo me disse que o futuro é que determina o nosso passado; não o contrário. Tenho chorado nos cinemas, tenho gostado cada dia mais da velhice, do amor, dos filmes, das sessões de sábado à noite e de pessoas genuinamente bonitas no escuro; sem tentativas de sedução coletiva, sem fotos, sem exibições em corpos esbeltos e sorrisos muito brancos de consultório odontológico. Beleza de verdade, que se abre a qualquer pessoa, em uma fileira I, de um cinema qualquer perto de casa, Portugal, Viena ou Grécia.
  O tão bonito que não cabe em foto com filtro, em um carro popular de cinco lugares, em uma mesa de um bar caro de média gastronomia; beleza que não é medida na estreiteza dos contos de fadas, das capas de revistas ou nas insatisfações alheias que ainda não aprenderam que podem ser carregadas sem tanto esforço. 
  A vida invisível, e cheia de ternura, dos amores que não se pretendem fotogênicos é a única que me faz ser salva do desconsolo que é a dos destinos que se desgarraram antes do tempo. Tenho vivido mais da beleza da invisibilidade, dos amores discretos e genuínos, dos afetos reais e delicados que se mantêm no escuro, no absurdo, no ordinário, sob os olhares de intolerância, ódio ou indiferença. A vida invisível dos afetos cotidianos ainda há de nos salvar da cegueira coletiva.

Nenhum comentário: