terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Vendem-se pipas, papagaios e linhas

  No portão de ferro numa casa do centro, o anúncio na placa, já tão antiga ali, hoje evoca um tempo e um lugar de onde os sonhos alçavam vôos sem itinerário definido e sustentados por uma rabiola longuíssima de plástico, feita com o pacote do pão sovado. As rabiolas se arrastavam pela casa, antes de serpentearem livres no azul de julho e janeiro. Agarravam nos pés das cadeiras, nas frestas das portas, nas quinas de paredes chapiscadas, dobras de tapetes e, por último, na mesinha de centro da sala.

  As pipas de folha de seda colorida e varetas finas de bambu polido iam soberbas na frente, mas as rabiolas, eu sei, é que mantinham o tempo e a altura do voo.
  Elegantes, traçavam no céu sinuosas e vermelhas curvas. As letras vermelhas, do pacote transparente, ultrapassavam outras pipas, desviavam de outros papagaios  e conheciam paisagens de perspectivas que eu nunca terei.
  A composição do pão sovado ia bem longe, depois de ser promovido à rabiola. As letras vermelhas ganhavam o céu que eu só posso assistir do chão. A rabiola nunca voltava completa, perdia suas partes ainda durante o voo. As linhas das pipas vizinhas, com cerol, despedaçavam suas extensões e eu imaginava as letras vermelhas dispersas pela cidade. Podiam chegar a qualquer lugar.

  Passo em frente à placa e não sei se dentro da casa, além das pipas e papagaios, também confeccionam rabiolas; às vezes comprávamos as pipas e a rabiola era adereço a se fazer em casa mesmo.
 Eu nunca deixei de pensar no fascínio que eram as rabiolas, mesmo que não solte mais as pipas.
Tenho tentado fabricar rabiolas gigantes, um pouco por dia. Tenho cortado sacos plásticos transparentes, mas as letras vermelhas não levam os ingredientes do pão sovado. As palavras na rabiola sou eu quem escolho agora.
   Penduradas em pipas caseiras, as rabiolas saem para a rua para não voltarem inteiras. Saem para se abrigarem em outros mundo, afetarem outras existências, se comunicarem com sentimentos distantes. Ou, pelo menos, para sujarem o chão de cordões rabiscados de vermelho.

  Tenho espalhado palavras vermelhas pela cidade, talvez não com a constância que eu gostaria, mas tenho tentado alçar voos com palavras impressas em rabiolas compridas.
  Minhas rabiolas independem do clima, dos fregueses gostarem delas ou não, de as crianças estarem de férias ou em período letivo e ser uma quarta-feira com um teste de matemática antes do recreio.
  Minhas rabiolas não esperam climas apropriados, às vezes saem sob fortes chuvas ou sol escaldante; às vezes são confeccionadas entre lágrimas ou gargalhadas abundantes. Minhas rabiolas já são maiores do que as minhas mãos.

  Há os que se incomodam com o pedaço de plástico com letras vermelhas agarrado no para-brisas e pedem, com raiva, a algum menino no sinal para se livrar do incômodo, depois, dão moedas ao menino e nem dizem obrigado; há os que ignoram o vestígio do voo e continuam seu passo apressado, passando por  cima das letras; há também os indiferentes, que até veem o voo, mas não se afetam por ele.
  Mas há, felizmente, os que se encantam com um presente do céu; num inesperado pouso-poesia.
 Uma pipa inteira não cabe sempre numa bolsa de mão, numa sacola, num guarda-volumes do supermercado, mas a rabiola... A rabiola cabe em qualquer lugar: bolsa, bolso, mão, calma, urgência, mãe doente, pai sumido, filhos com piolho, aluguéis atrasados, contas que vencem amanhã, salários que não chegam essa semana ainda, casamento prometido ou a naufragar. A rabiola cabe.

  Cabe no instante; em cima da mesa da sala de jantar, na cozinha do escritório de contabilidade, na mesa do bar.
  As palavras da rabiola não acordam os bebês com sono leve, os idosos quase insones, os trabalhadores em descanso merecido. As palavras vermelhas ninam, consolam, ajudam a descansar depois de um dia de labor difícil.
  Num colo maduro e aconchegante; num tórax rígido e desacostumado. Nos cabelos longos e na nuca batida. As palavras da rabiola cabem, se ajeitam, encontram os seus destinos.
  Num sonho.
  Numa alma.
  Numa esquina.
  Veza entrou como um raio de sol, me chamando para ir para fora, Rupi trouxe a sororidade da minha irmã mais antiga; Cora foi doce de figo em compota, sofisticação mais simples; Hilda me ajudou com a minha loucura - não domesticamos ela, nos acostumamos; Cecília me ajudou a colocar os meus sonhos no mar e a encontrar Sophia do outro lado; junto com Florbela, Pessoa, Eça e Saramago. As rabiolas levam tantos nomes.

  Um sonho pesa muito, um sonho sempre é maior do que duas mãos muito grandes, mas ele magicamente sobe, se estiver preso a uma rabiola feita de palavras.
  Meu aluno e meu livro. Minha amiga e as minhas verdades. Os olhos que perseguem e alcançam uma rabiola que eu nunca mais verei.
  Eu fiz uma pipa uma vez, agora fabrico rabiolas infinitas que ajudam a minha pipa a manter-se livre e alcançar céus que eu não posso ver.  Que as minhas rabiolas encontrem quem as queira ou precise delas, que as minhas rabiolas encaixem nas pipas que perdem altitude a cada minuto. Que as rabiolas de palavras vermelhas comovam um menino, uma senhora ou uma estante. Vendem-se pipas, papagaios e linhas; as rabiolas eu não troco por dinheiro.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 15 dez 2019

Amanda

Emocionante!! Então é isto!

Amanda Machado disse...

Que bom, Paulo!
Gracias siempre!