sábado, 14 de dezembro de 2019

Um dia isso tudo será outra coisa

  Um dia, meu amor, nós não seremos tão nós; não teremos nós como agora, não reconheceremos mais nós. Um dia, a minha voz será distante, noutro muito diferente, noutro irreconhecível, noutro será eternamente silêncio.  Um dia, meu amor, as minhas mãos, se as suas ainda as encontrarem, terão manchas de tempo, serão menos lisas e ágeis, depois a pele será tão vulnerável quanto a pétala de um rosa e os  ossos saltados, de uma artrose, parecerão espinhos.
  Um dia, meu amor, minhas pálpebras já não serão mais firmes, começarão a encobrir um pouco meu olhar altivo, até se acomodarem cansadas e encurraladas sobre os meus olhos menos amendoados e cada vez mais caídos.
  Um dia, meu amor, meus cabelos não sustentarão tranças, eu não vou fazer mais coques com canetas e os fios naturais serão todos grisalhos, se eu resolver não intervir na natureza.

  Um dia, meu amor, nosso gato não volta, noutro ele volta depois de muito tempo, noutro ele nem sairá mais de casa e, se estivermos os três no mesmo apartamento, nós dois lamentaremos que ele não fuja mais. Um dia, meu amor, o gato não será mais o gato de quando nós éramos outros. Um dia, teremos o gato para confirmar o que gostaríamos de esquecer: o tempo é implacável.
  Um dia, o interfone toca e há alguém desconhecido a solicitar a presença de um dos dois ou ambos, ao mesmo tempo, na portaria para receber alguma intimação da justiça. Um dia, contrataremos um advogado ou dois, dependendo da situação, e vamos bem vestidos a alguma repartição, tentaremos ser verdadeiros, mas não muito.
  Um dia, a saúde de alguém próximo nos chamará à emergência e teremos papéis para assinar, roupas para buscar, escalas de acompanhantes para sugerir e orações a serem relembradas em alguma capela próxima.

  Um dia, meus pais serão cheiros,  histórias e fotos amarelecidas. Vou sonhar noites seguidas com o barulho da máquina de costurar da minha mãe;  com o sabor do pão com mussarela que o meu pai trazia do trabalho, para mim, em um saco plástico, quando fazia hora extra; com os goleiros que o meu irmão criava de caixa de palito de fósforo para o seu jogo de botões; com a cama da minha irmã ao lado da minha e as nossas colchas iguais aos sábados de manhã, depois de trocarmos as roupas de cama.
  Um dia, os natais terão outras crianças, das quais esqueceremos os nomes, os presentes serão repetidos e funcionais, as bebidas sem álcool e a comida mais leve. Um dia, meu amor, ninguém nos escreverá um cartão de natal.

  Um dia, os nossos sonhos serão outros, os nossos voos serão por outros céus e as músicas  das quais gostamos hoje, poucos conhecerão.
Um dia, os nossos gritos não serão ouvidos por ninguém, porque acostumamos a estancar a dor, a disfarçar o choro, a sorrir na insatisfação e a nos espremermos para caber num lugar que não é para nós.
Um dia, meu amor, todo esse disfarce vem à tona, a cobrança chegará inevitavelmente às nossas mãos. Lágrimas nos elevadores, solidões à mesa, café no meio da tarde sozinha em algum lugar bonito no centro, um jardim de cactus para cuidar. 

  Um dia, nossos amigos compram uma casa na praia, convertem-se a algum tipo de religião, tornam-se veganos e abstêmios e nunca mais sentamos para conversar.
  Um dia, outros amigos precisam buscar o filho no balé, noutro levar a filha para fazer a prova de habilitação, noutro um filho não volta para casa. E por causa deste último, nunca mais sentamos para conversar porque só saberemos chorar.
  Um dia, meu amor, os filhos dos outros serão um pouco nossos, mas nunca nos chamarão de mãe e pai, porque não são nossos, como nós somos deles.

  Um dia, todo esse ódio, essa intolerância, essa perspectiva obtusa se tornará olhar perdido, solidão, talheres de prata sem convidados para o jantar, nódoa constante na boca e articulações rijas. Um dia, o cão, um sobrinho ambicioso e o empregado serão as últimas companhias do sujeito. Depois, o sobrinho vai embora com uma herança, o empregado se cansa e serão o cão, aos pés da mágoa, que segura um uísque às duas da manhã.
  Um dia, meu amor, toda essa desilusão vai passar e seguidas a essa virão muitas outras. E vamos, de novo, achar que sucumbiremos, mas não!
  Um dia, saberemos nos reconhecer vitoriosos na derrota.

  Um dia, nosso amor será lembrança vívida. Cor e companhia em dia de chuva. Um dia, o Belchior se tornará um hino para nós e nem sabíamos que ele era tão importante na nossa história.
  Então, meu amor, não olhe para mim, se você não pode me ver. Porque um dia, meu amor, pode ser que eu não pareça outra para mim, mas aos seus olhos serei outra.
  Um dia, meu amor, só terá valido a pena cada minuto que amávamos sem saber; que fomos amados sem nos darmos conta. Um dia, meu amor, essa bagunça será outra; os governos absurdos serão outros e as notícias inquietantes nos jornais serão outras, mas, meu amor, teremos os cheiros, as lembranças, o dia em que choramos pelo gato e comemoramos o nascimento de algo. Um dia tudo será outra coisa e amar essa outra coisa é o que a vida nos propõe.


3 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 19 de dezembro de 2019

Amanda,

Gostei da tônica do texto - não há um pré-determinismo, há a constatação de que um dia sempre virá de uma forma diferente da que planejamos.

Muito bom vir aqui!

Paulo

Kellen disse...

Tão lindo...

Amanda Machado disse...

Voltem, queridos! E voem...
Gracias!