Esse tempo, tapete de segundos em que pisamos nas suas bainhas, não poderia ter sido mais árido, mais hostil, mais inóspito, mais vazio de poesia e pão.Esse alinhamento de dias seguidos não poderia ter sido mais maçante, mais destituído de afagos e afetos sem interesses, mais desnutridos de verdade e presença. Mesa na cozinha de taipa, debaixo do sol, com gato faminto, subindo e descendo, chicoteando com o rabo as moscas, os farelos e as ausências.
Esse ano que agora atravessa seus últimos grãos para o outro lado da ampulheta, não poderia ser pior frequentado. Arrombaram a porta os intolerantes, ignorantes, inumanos, indecentes fascistas, racistas, machistas e nem limparam os pés no capacho. Não anunciaram chegada sutil, foram ocupando com gritos, sapatos sujos e mentiras deslavadas.
Esse ano que nos escapa das mãos agora, não poderia ter ofertado manhãs mais luminosas, com ou sem sol. Um dia depois do outro; consolo para quem chorou uma noite inteira. Não poderia ter enviado azuis de céus mais amorosos e ternos, não poderia ter nos salvado mais das mágoas, das desilusões, com os seus coletes verdes de esperança.
Esse ano não poderia ter sido mais grandioso em exibições da natureza: flora, fauna, sonhos e balés.
O ano do qual nós soltamos as mãos, agora, não poderia ter ofertado cardápio mais abundante em aromas: café, grama molhada, talco depois do banho, giz de cera no papel, patas do gato, bolo saído do forno, laranja descascada, geleia de maçã no fogo brando.
Esse ano, poeira que varremos agora para debaixo da fresta da porta dos fundos, não poderia ter sido mais cruel com os humanos que não são só homens; nós mulheres, nós bruxas, nós monas ou manas. Feminicídios, disparidades de condições e salários, assédios no trabalho, na casa, na rua, na internet.
Chega de fiu-fiu, de em briga de marido e mulher não se mete a colher, de mulher de malandro; chega de olho roxo, braço quebrado, filhos sem pais, pais e filhos sem paz.
Deixa ela treinar, publicar, pesquisar, dirigir, escrever, ensinar, gestar, interromper a maternidade não desejada, gerir, cantar, correr, gozar, casar - se quiser -, ir embora, ficar, viajar, plantar manjericão, criar os filhos, porcos ou histórias.
Esse ano de casamentos homoafetivos, de representatividade, de sermões que absolvem, se desculpam, se indignam muito mais do que condenam. Esse ano de bandeira multicor nas camisetas, nos caminhos, nas faixas de pedestres, nas relações.
Esse ano de marchar de mãos dadas, de denunciar, de defender, de compreender, de não deixar passar, de não acreditar que é assim mesmo.
Esse ano de lutas no luto e lutos cheios de lutas. Esse ano de globos de paetês, bolas de natal com glitter, Maria Callas e Serena Assumpção.
Esse ano de colo de vó, beijo de filho, mãos de pai, amor de mãe. Esse ano de amor sem mentira, café sem açúcar, leite sem nata, lua sem fotos, nua sem pudor.
Esse ano nascido de uma estocada bruta, vingança a que fomos sujeitados por nós mesmos; mão que levanta e esfaqueia. Memória que esquece que apanhou muito, que morreu torturada e subtraída. Esse ano de incoerências, inconsistências, indecências, indigestões.
Poderia ter sido menos sofrido, medida certa de doce com bem pouco amargo. Mas foi azedo esse ano, foi leite esquecido em cima da pia em dia muito quente; sem proveito, mas forçado a passar pela garganta da fome. É o que tem.
Esse ano que nos aconteceu é somente um recorte daquilo que temos sido: medrosas e vitoriosas; loucas e santas; amantes e castas; abelha rainha e operárias.
Esse ano o amor, a coragem, a entrega e os muitos medos.
Esse ano o vazio, o inconsolável, o meu pai na fila do SUS, a sua tia atropelada.
Esse ano o primeiro choro e os infinitos sorrisos.
Esse ano o Dorflex com um xícara de chá antes de dormir e o Hipoglós depois dos banhos; de testosterona e progesterona.
Esse ano de nebulosas mentiras, de intrigas mordazes, esse ano de abraços quentes e conversas até o nascer do dia; esse ano de mares e passeios de trem, esse ano de SP, onde não existe amor e Salvador, onde existe muito, sim senhor.
Esse ano bomba e paz; luta e serenidade; cansaço e contentamento. Esse ano que nos aconteceu foi raio e pena; queimou, decepou, matou liberdades, atropelou dignidades, mas pousou poesia, repousou na folha bordada desejando que eu fosse luz. Para andar na escuridão ou se acostuma com o breu ou aprende a enxergar o brilho. Esperança dá nome, dá direção e coragem.
Esse ano, que é hoje, e que amanhã será aquele é só o recorte de um tempo em que aprendemos a desviar das balas, enfrentar os fuzis e beijarmos apaixonados o estrangeiro, que por amor ou curiosidade, aprende o nosso idioma. Esse ano que nos aconteceu há pouco, não termina quando acaba.
2 comentários:
Minas Vazia, 31 de dezembro de 2019
Prezada Amanda,
Raras vezes li aqui um texto tão duro por aqui.
Amanda, os tempos estão duros, a vida está dura. Eu percebo que as ações sociais compulsoriamente expostas sempre foram enrijecidas pela Soberba, Avareza, Luxúria, Inveja, Gula, Ira e Preguiça.
Nestes tempos, com a facilitação de comunicação e vigilância em massa, é potencializada por novas modalidades adjuntas ao poder, tais como:
- A Pressa (em destruir o Bem, em retirar direitos),
- A Manipulação genética (vegetais, animais, humanos)
- Interferência no Meio Ambiente.
- Promoção da Pobreza,
- Acúmulo de riquezas,
- Felicidade (?) a qualquer preço e a qualquer droga,
- Promoção da Injustiça Social.
Dante Alighieri acrescentou a Mentira e a Heresia como temperos do mal que assola o que está aí.
Feliz 2020 no que temos de melhor!!!!!
Minas inconfidente, dia dois do ano de 2020
Caro Paulo,
aterrissamos!
Nessa jornada longa e louca chegamos ao aqui, não sei o que isso significa propriamente, mas já acho uma vitória contundente sobrevivermos. É claro que não é o bastante, mas é uma possibilidade de irmos além da sobrevida fisiológica...temos tanto...só não sei como fazer chegar esse tanto a todos que precisam, merecem, têm direito (e nem sabem que têm).
Quis muito não ser dura no texto que fechou, aqui no blog, o ano de 2019...sentei e quis mesmo escrever um texto leve, otimista, bem alegre, para que pousasse cheio de esperança e sonhos bons no colo de algum leitor que porventura viesse até aqui. Mas os tempos são difíceis, embora muito generoso comigo, e na escrita, ao menos na minha, não nego a voz que lateja em mim.
Paulo, grata demais às contribuições valiosas que você sempre traz aqui (estou agradecendo por mais um ano de visitas) e, principalmente, por ser esse leitor sensível, curioso, delicado e afetuoso.
Que 2020 seja um ano mais combativo e bem menos depressivo (nesse sentido apático que temos nos abrigado). Seguimos e seguiremos fortes, corajosos e generosos.
Abraços em você e nas suas/seus
Amanda
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