segunda-feira, 20 de janeiro de 2020

Uma mulher em que a casa mora

  Sete e trinta e cinco da manhã e ele lava as grades do portão da casa. É sábado e eu sinto um
 apaziguamento em ver limpezas aos sábados pela manhã, talvez porque em casa, antigamente, era o dia da faxina também. Reviro a infância no cheiro de sabão.
 Viro mais o rosto para ver a espuma se formando entre as barras de ferro e sinto uns respingos de água no rosto. O meu boné não evita o encontro dos pingos com a ponta do meu nariz; é como a vida é sentida, algo sempre rompe a proteção.
   O homem não percebe o meu milésimo de segundo presente, continuo o caminho e ele a sua limpeza. Não nos conhecemos, ele não me viu, mas eu sei dele.

  Oito e dez e o meu caminho, de novo, passa pelo portão; agora já é limpo. A torneira está fechada, a mangueira vermelha não serpenteia mais pelo  jardim e a escada dobrável já deve estar trancada em algum quartinho nos fundos da casa. O homem atravessa a rua em direção ao carro estacionado à sombra de uma árvore, de roupa mudada, sapato, cabelo penteado. Então, ele entra no carro, dá a partida com os olhos fixos no trânsito; o portão, a casa e eu não somos mais o homem.
  Ele segue sem vestígios domésticos: sem acúmulos de poeira, sem roupa respingada, sem cheiro de detergente ou arranhões aparentes nas mãos. Não haverá sob as suas unhas um pedaço de sabão, uma ferpa de espoja de aço, um choro de menina, uma quentura de febre na sua cama. É ele e o seu presente; ele e o carro. O portão, a espuma, a esponja, os braços alongados e a água escorrendo sob a manga da camisa não pertencem a esse homem mais.

 Oito e vinte e cinco, outra rua, outro homem e outro carro. O mesmo boné, o mesmo nariz respingado e a mesma caminhante. O outro homem acaba de deixar uma casa, mais uma vez, depois de uma centena de vezes, de vidros lavados, de paredes pintadas, de cães treinados, de gramas aparadas, de blocos empilhados, de um filho feito, de um amor desbotado, de uma ex-sogra entristecida, de uma cadela solitária ele entra no carro, dá a partida e não leva nada. Ninguém saberá dos seus abandonos.
  Sábado de manhã e dois homens saem de suas casas sem passado visível, sem poeiras dos portões, sem as mãos enrugadas da água, sem se ferirem com os cacos de sonhos, recém-destruídos, de um filho que será infeliz por não saber do amor do pai. Um homem mora em uma casa; um homem se muda para sempre de qualquer casa.

  Três e quinze da tarde e a mulher da casa ao lado reclama de ter de sair de casa sob um sol escaldante para encontrar o novo namorado. A mãe aconselha:
- Melhora o humor ou não vá. Imagina a situação do homem, minha filha: sai de casa todo feliz para encontrar a namorada e ela está emburrada? Melhor não ir.
  Ela estende uma peça de roupa no varal, abre o portão da área coberta para a cadela entrar, recolhe em uma pá os cacos do último sonho do filho, separa-os da sujeira e deixa-os em cima da máquina de lavar, para quando chegar em casa tentar remendá-los com muita paciência e delicadeza. Explica para a mãe o lugar do encontro, deixa-o anotado em um papel na porta da geladeira, vai ao quarto do filho, dá um beijo no menino que tem chorado muito nos últimos meses e aproveita para levar o copo sujo de refrigerante da escrivaninha dele para a cozinha. Um carro vem buscá-la e ela leva a casa.

  A mãe, o filho, o amor desbotado, a cadela solitária, os blocos de tijolo ainda empilhados, a porta nova que nunca chegou a ser instalada, os lençóis perdidos das fronhas de um conjunto do enxoval, o saco de arroz pela metade, o açúcar mascavo que esqueceu de despejar no pote, as trouxas de roupas lavadas acumuladas e que serão passadas um dia, os gritos de "por que eu nasci?" do filho, os conselhos amorosos da mãe, os telefonemas da irmã que mora em outro estado, a sua roupa preta "pareço uma viúva negra" tudo cabe no banco da frente do carro em que ela entra. Uma mulher sempre transporta várias casas. Uma mulher nunca se muda de uma casa.
  Ela decidiu ir ao encontro do novo, da tentativa de uma amor colorido, de um homem cujas casas nunca serão visíveis fora da casa. De um homem que entra no carro, dá a partida e não tem passado.

  Quando ela volta, o filho ainda não tomou banho, a mãe está com dores nas costas, a cadela continua amuada.
- Vai que ela puxou o seu mau humor? Disse a mãe.
  O gás acaba, ela pede outro ao telefone. Queria café, mas vai ter que esperar o gás. Depois, puxa três pequenas pilhas de tijolos para o meio da varanda e chama o filho e a mãe para dividirem o chocolate que ela ganhou do namorado. A cadela se aproxima e ficam os quatro suspensos num quadro melancólico que eu vejo da minha janela.
  Elas nunca irão se mudar. Só o menino vai embora um dia. Um pouco mais crescido, ele dará a partida no carro e os chocolates dessa tarde terão sujado apenas as mãos da mãe e da avó.
 Todas as casas moram em alguma mulher, das quais não se mudam nunca.

  Sábado de manhã e as faxinas da minha casa ainda me encontram, mesmo que eu recuse as vassouras, que eu não compre mais detergentes de coco e que eu adie os filhos que já têm febre e vão para a minha cama durante a madrugada. Uma mulher não mora nem abandona; uma mulher acolhe e carrega suas casas para sempre.
  Uma mulher em que a casa mora saiu para namorar sem vontade, foi de luto. Voltou suada com chocolates e à noite vai colar os mil pedaços de um sonho, de seu filho, que se espatifou no chão mais cedo.
  Já os dois homens, abandonam portões, espumas, bandeiras de time, cães, portas, filhos e ex-sogras tristes. Porque só vai quem não tem uma casa dentro.



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