terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

E se são os poemas a nos escolherem?

  E se a geografia é que nos escolhe? Se estar em uma determinada parte do continente é uma atribuição do próprio mapa? Se for ele a nos mover e não nós a ele?   Se for ele a nos carregar para uma aula, tática de guerra ou planos de viagem? Se marcar em nós o nosso destino de migração ou nacionalidade? Se Espanha ou Suécia for um dedo que nos aponte, um dia, e invanda os nossos sonhos e intenções mais profundas.
  E se estar em Tóquio for uma escolha de Tóquio por nós e não nossa por Tóquio?
  E se, de repente, os lugares escolhem a gente e não nós que os escolhemos? Se ter nascido longe do litoral for uma escolha das montanhas pelo que a gente pode ser sem a maresia nas nossas entranhas? Se nascer em frente ao mar for uma determinação marítima de também sermos marítimos?
  E se for a geografia a se mover sobre nós e não o contrário?

  E se são as canções que fazem de nós alvo e depois morada? E se não houver um gosto, memória, referências que nos façam amar e investir os sentidos numa música, mas ser ela a eleger nossos ouvidos e alma?
  E se uma música aponta a gente como inspiração e nos chama a replicá-la, a gostar tanto dela que passamos a morar nos seus acordes? Mas porque ela nos elegeu e não nós a ela. E se as canções que nos sensibilizam forem, antes, sensibilizadas por nossos olhos, gestos e cordas? E se as canções se comoverem conosco e nos amarem muito antes de nós as amarmos?

  E se os planos inventarem a gente e não nós delinearmos eles? Se casar, ter filhos ou ser celibatária e ter gatos ou nenhum dos dois, for o desejo de um plano anterior a nós? Sem deuses, sem eclipses, sem magias, só um plano que nos descreva como repositório?
   E se os desvios, os deslizes e os obstáculos forem os caminhos certos? E se nós entendemos tudo errado sobre a trajetória? Se o que chamamos de errado for o insuspeito plano que nos antecede? E se essa trama toda regular os nossos passos cambaleantes, inventar as nossas lutas, escolher as nossas sabotagens diárias?

  E se forem os dias a nos verem passar? Ociosos, sentados em uma escada baixa em frente a uma porta amarela ordinária. E se eles, algozes, nos marcarem um xis na cara, cortando uma parte nossa a cada vinte quatro horas passadas? E se o curso dos dias comuns não for enfadonho para nós, mas nós a eles? Se formos entediantes ou urgentes demais e os dias se encontrarem para reclamar da nossas incertezas?
  E se o calendário nos mantiver em cima de uma mesa pálida, esperançosos de uma felicidade que apareça a cada dois meses de mediocridade nossa? E se os dias esperarem um contentamento nosso para chamar de feriado? E se a infelicidade for um fenômeno que nós criamos para colocar sombras nas noites de domingo e segundas-feiras inteiras?

   E se forem as lembranças uma invenção do agora arrependido? Se os dias atuais construírem um falso memorial de experiências e sensações que ainda não vivemos? E se só nascermos no final? E se for a morte a nossa origem? Quem dirá que verdade ou não?
  E se a criança que achamos que fomos for só um desejo de candura nosso? E se nunca fomos tão felizes, tão brilhantes, tão saltitantes, como nos lembramos? Suportaríamos a verdade de um passado duro? E se a gente inventa boas memórias para suportar o presente tão cheio de lacunas, dores e dúvidas?

  E se forem os amores a escolherem a gente? Cada qual com o seu deleite e pesar. Se amores mais leves, se amores de arrastar por anos,  não como um sofrimento, dor ou violência, mas como um destino, um amor que atravessa agruras e tempestades para só florescer na luta.
  E se for o amor que aponta para o coração da gente e o liga a outro, sem nem que a gente imaginasse nunca? E se ele amarra duas existências em uma linha vermelha e solta  na multidão? Vão sempre se reconhecer os pares presos na linha ou desviarão do amor-destino?
  E se os amores escolherem não amarem juntos? Se o amor quiser alguns muito sós e felizes de solitude? E se os amores escolherem pares de um?

  E se são os poemas que nos escolhem? Se apontam para nossa melancolia e se instalam lá para sempre e nós achamos que a literatura é a nossa vontade? E se não for? Se nós formos a vontade das palavras de se deitarem em nós, se elas se aconchegarem nos nossos colos por carência ou solidão? E se elas nos espetarem com as  suas lanças para celebrarem a sua onipotência? Uma palavra é muito mais poderosa do que um leitor apenas.
  E se tudo o que eu li, vivi, conduzi, caminhei, plantei ter me feito chegar exatamente no muro com aquela poesia?
  E se os poemas forem uma geografia que nos escolhem e nos levam sempre para onde nos faz mais sentido ser? E se os poemas forem uma geografia de onde não podemos mudar, depois de instalados neles?


2 comentários:

Bel disse...

No aguardo do gabarito... Kkk

Amanda Machado disse...

Deixarei na última página deste blog...para este e todos os outros textos...senta aí e espera. Hahaha