quarta-feira, 19 de fevereiro de 2020

Um país de afetos possíveis

     Ele sobe a rua, eu venho logo atrás e me espanto como o tempo é ainda mais evidente nas pernas de atleta dele. Quando eu me mudei para o apartamento ao lado da sua casa, ele andava de fralda pela  varanda e vinha conversar quando eu estava na janela. Foi o primeiro nome que eu aprendi na minha casa recém começada, foi a primeira voz que a minha memória guardou, foram os primeiros pares de olhos que se fixaram nos meus, foi a recepção auspiciosa que anunciou que a minha vida era outra e eu começava a gostar mais dela. Eu não sabia ainda que a existência desse menino de fralda seria o marcador dos meus tempos desde então.
  Agora, ele sobe e tem pressa. Não pergunta o meu nome nem o de nenhuma outra pessoa na rua, não fala coisas tão curiosas e em voz alta e o que cresceu em estatura e maturidade, projetou sua personalidade mais para dentro de si do que fora.

  Eu não sei tanto sobre o cotidiano de amigos ou familiares como conheço o do meu vizinho. Sei das suas tristezas, da dificuldade em crescer com a ausência, cada dia mais larga, da paternidade que não se comove, suspeito das suas angústias, culpas, medos e vergonhas. Sei das duas recuperações do ano passado, da sensação de não ser bom em nada e de estar sozinho, porque ninguém o entende. Eu gostaria de gritar daqui que sei dele e de tudo mais que ele tem sentido.
  Sinto por ele a ternura máxima de uma testemunha que assistiu o tempo engrossar suas pernas e voz. Sinto que a sua alegria infantil só se afastou, por um tempo, do menino que cresce agora com as dores pelas quais passamos todos nós, com as muitas diferenças, mas também com as semelhanças  que a vida nos faz cruzar pelo caminho. Sinto que ele é uma espécie de vudu da minha existência: os tédios dele doem nas minhas costas, as dúvidas me dão dor de cabeça, os vazios aceleram o meu coração, os abandonos fazem as minhas respirações mais curtas e o primeiro amor platônico dele me deixa aérea e com dores estomacais.

  Assisto aos seus passos rápidos e aos seus calcanhares, parecendo tentar furar a calçada e imagino o quanto estar vulnerável e em público é desconfortável para ele. Logo ele cuja roupa favorita foi, por um tempo, fralda e cuecas. O menino curioso e simpático antes, agora é inibido e só olha para os pés, quando não está em casa.
  Acompanho os seus passos nervosos e fico aflita também. O que a vida está fazendo com os nossos sonhos e sorrisos? O que nós temos feito com as crianças que nos habitavam, a minha muito mais remota e a dele tão próxima, mas já tão adormecida agora.

  Queria que a sua mãe dissesse mais vezes que ele é inteligente e menos vezes que ele é preguiçoso. Queria que o pai ofertasse mais tempo, dedicação e afeto. Queria que o pai dele fosse um pai e a mãe uma mãe e eu a vizinha com quem ele trocasse algumas palavras, quando fosse pendurar a tolha de banho no varal. Mas ninguém aqui segue o roteiro. Só ele e a tolha pendurada tão corretamente. Somos três planetas que o cercam e ele ainda se acha completamente só na galáxia que ele imagina. Somos três entusiastas da satisfação dele com qualquer coisa, mas não somos capazes de partilhar das suas angústias.

  Ele volta da escola, da qual nem sei se conseguiu se recuperar no ano anterior. Depois das notas, da indiferença do seu primeiro amor, da sensação de ser o único filho cujo pai não leva para uma viagem de férias, depois de mentir que está tudo bem e se esconder no banheiro para chorar, depois de se sentir humilhado pelo professor que falou a sua nota para a turma inteira ouvir, depois de evitar o espelho do banheiro e do elevador porque os pelos e as acnes não podem mais ser contidas.
  Ele sobe a rua cabisbaixo, com o maxilar duro e  passos  rancorosos e eu o acompanho; não na raiva, porque não tenho, mas no tempo que ele imprime para mim há anos. O menino que ele foi, e ainda tenho esperanças de ter guardado, é a minha memória do início da minha vida adulta. O menino que ele é hoje é essa interrogação: para onde eu cresci? Se eu cresci.

  Ele sonhava em viajar pelo mundo em uma moto, simulava viagens e os pais sorriam das suas histórias tão ricas em detalhes. Hoje ele fala pouco, derruba paredes e pinta outras para tentar se esquecer da solidão que é crescer. Tem pernas de atleta e raiva pelos abandonos, é o filho de alguém que não suportou a paternidade e de outro alguém que a custo de imensos esforços, mantém  uma maternidade razoável.
  O menino anda mais um pouco e, sob o sol, alguém o espera na calçada em frente a dois prédios antes da sua casa. Se aproximam, não falam muito e o homem abraça o menino, cujo semblante duro pouco muda, mas deixa o corpo ser abraçado. O pai veio. O abraço chegou e eu assisti uma alegria discreta, mas nascente.

  No abraço paterno ao meio-dia de uma terça-feira de fevereiro, sua moto o encontrou. Ele subiu, acelerou depois dos primeiros minutos de desconforto e foi para o país dos afetos possíveis.
  Não teve lágrima, mas eu ouvi suspiros; não teve perdão, mas eu não escutei ofensas. Eu preciso da alegria dele de volta à varanda, do medo dele em gritos agudos e dos sonhos dele, que me lembram o quanto cabe de esperança em qualquer ser humano que ainda cresce.
 Eu preciso de esperança, poesia, um carretel de linha verde e uma história de amor cujos amantes não sejam romance, mas paternidade alcançada e maternidade compreensiva. Eu preciso de um país de afetos para que os meninos voltem a sonhar, de um tempo que não acolha somente tristezas, mas muitos sorrisos na intimidade indiscreta e de um governo que não seja capaz de odiar o seu povo nem de fazê-lo odiar espelhos.



2 comentários:

Bel disse...

desejo que esse menino se encontre. nessa ou noutra galáxia! (música linda, hein?!).

Amanda Machado disse...

Sim! Todos nós seguimos nos perdendo...que ele encontre um caminho de amorosidade e sonhos. Também adorei a música...Arnaldo, né? Sabe de poesia...