terça-feira, 25 de fevereiro de 2020

Por todas as esperas, por tudo o que ainda não vimos descer na plataforma


  É ele na esquina, de novo. No mesmo lugar hoje e nas outras manhãs dos últimos seis meses. É ele.
Ele com a mesma combinação de vestuário: bermuda de tactel e camiseta de algodão.
  Às vezes fica sozinho, parado, olhando para o movimento da avenida. Noutras vezes inicia uma conversa rápida com alguém que sai da padaria ou do bar, na mesma calçada de onde ele não se ausenta mais.
  Nas primeiras vezes em que o vi, achei que era algum freguês da padaria ou companhia de alguém que que buscasse pães pela manhã. Tão cedo, tão imóvel, tão insistente na esquina ao longo dos dias. Mas depois eu percebi que não, não eram pães ou pessoas com pães que ele aguardava, a esquina é dele e a espera é secreta ainda, ao menos para quem olha.

   Passam o ônibus das sete, das sete e dez, sete e vinte e ele não entra, volto a passar por ele às oito e ele não se moveu ainda. Olha para os automóveis, aborda algum transeunte, faz um carinho na cabeça de algum cão e continua a espera, na esquina. Não se senta, não avança muitos metros ou retrocede, não tem relógio e olha para céu como quem contempla, não como quem se orienta. Tem os olhos de quem espera, mas não de quem está perdido. Eu saio todos os dias em um mesmo horário, cumpro um itinerário aparentemente conhecido e volto; é assim todos os dias e eu pareço menos exata do que ele que aguarda.
  Não achei sempre que ele esperasse, não sei se notei a presença fixa dele na esquina desde o primeiro dia em que ele apareceu, provavelmente não. Porque ele é discreto, é pequeno, é silencioso e a sua espera é muito cautelosa para se mostrar pública. Talvez, se eu o perguntar sobre ela, irá mentir, mudará de assunto e desviará seus olhos famintos de alguma coisa que eu não conheço.

  Fui entendendo espera, quando eu me aproximava mais dele e ele parecia cada vez mais longe, fui cogitando espera, pela distância que as suas retinas alcançam, fui entendendo impasse, pelas pernas inquietas, mas que não caminham para muito longe, se limitam a pequenos círculos imperfeitos, fui entendendo um outro tempo e cenário, pelos minutos que ele dedica diariamente aos passos de alguém que ainda não o encontrou na esquina.
  Talvez eu reconheça nele a universalidade da espera; que embora seja individual é similar a tantas outras. É uma dança cansada não querendo acabar antes do final da música; é um abraço melancólico com braços quase desistentes, que não podem entrega, mas não admitem desapego completo; é uma partida de futebol perdida, mas que ninguém tira as chuteiras antes do apito final, porque em uma estrofe, um suspiro, um lance as trajetórias podem seguir outros fins.

  Numa casa de repouso uma mulher espera com crochês que caem pelo seu colo estreito. Faz peças com mãos tão ágeis para as filhas que virão visitá-la amanhã - por isso a pressa - embora ela nunca tenha tido filha alguma.
  - Por que não me lembrei antes? Se chegarem e eu não tiver terminado não vou ter presente nenhum para dar.
  Ela reclama com a enfermeira, que já se acostumou com essa espera inventada, embora ainda doa saber que não é real. O homem alto com uma calça de moletom curta e desbotada abre e fecha a porta de entrada enquanto espera por algo ou alguém que não sabe explicar. E se perguntado o que faz ali, fica um pouco constrangido e responde um gago e impreciso:
  - Estou só para ajudar...
  Um outro homem muito debilitado se senta em frente a porta e também aguarda um lance, uma estrofe, um suspiro do outro lado da porta.

  Mrs Dalloway decorava sua espera com flores; Casmurro, enquanto esperava, colecionava provas inventadas de infidelidade de Capitu; Maria Antonieta esperava de vestido branco e dedicação ao jardim da sua casa de campo pela decapitação ou milagre. Nas cadeiras dos aeroportos, com as mãos trêmulas; nas plataformas das rodoviárias, com o estômago gelado; nos porões das ditaduras, durante as torturas; nos campos de concentração, na fila para as câmaras de gás; nas plateias, nos camarins, nos esconderijos, nas prisões, na incerteza insistente e na fé perene.
  Nas linhas de alguma carta, mensagem, num capítulo de livro, numa autora. Numa música, num telefonema, numa comunicação psicografada, num sinal, aceno, imagem ou memória.
  No altar, no discurso, no silêncio, na última vez, na mala, no carro, no táxi que pode vir ou não, no pátio, nos fundos, na fuga; porta da frente e sala principal, no confronto.

   Na guerra, na geada, na nevasca, na tempestade. No tédio, na poltrona, enquanto assiste à TV. No muro, no grafite, na poesia, nos passos de dança, na resistência e na completa entrega. No amor, na amizade, no ódio e na aparente indiferença. No álcool e na abstinência, no carnaval e na quarta-feira de cinzas.
   Na esquina, na casa com piscina; na palafita com telhado de amianto. No bloco do prazer e na ala da dor. Tudo é espera.

  Amanhã ele ainda estará lá e vai deixar passar o ônibus das sete horas sem tomá-lo. Amanhã o crochê estará pronto e a mãe não terá filha alguma para experimentar a peça. Os dois homens ainda disputarão um lugar na porta pela qual esperam serem encontrados, mas não sabem que olhos têm o salvador.
  Eu caminho todos os dias e passo pela espera de alguém a quem eu não posso mais ignorar. A minha espera está também nos meus passos, na minha busca por quem espera e nas linhas que eu teço a cada olhar. Com o tricô ocupando o meu colo, olho para porta da sala e sei que se bateram a campainha,  deixo tudo cair pelo chão, porque eu não finjo que não estou em casa quando a minha espera avança pelo portão.
  A espera dele é silenciosa, a minha nem tanto; mas se batem à porta, o certo é que estejamos dispostos a assumir que sempre estivemos aqui, aguardando a sua chegada.



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