domingo, 1 de março de 2020

Eu respondi ao seu aceno vinte anos e quatro meses depois e nunca foi tarde

  Não fui eu que o vi aprendendo a andar de bicicleta em alguma cidade do interior. Não assisti às quedas, às desistências, à primeira volta completa, o guidão se reclinando em uma curva, os seus braços tremendo, os pés errando os pedais, a sua coragem contornando curvas e disparando nos semáforos. Eu não saí com você para comprar sapatos de festa nem o ajudei a escolher uma camisa para qualquer ocasião. Não fui eu quem segurou a sua mão quando você via o mar pela primeira vez. Eu não tentei explicá-lo a você nem me emocionei, compartilhando uma imensidão assustadora, inesquecível e azul.
  Eu não estive em casa, no seu quarto, quando você chegava da aula e precisava de alguém que dissesse que você não era um problema, que você era importante e amado. Eu não ensinei amor a você.

  Eu não o ajudei a escolher um nome para o seu cachorro, real ou sonhado. Não mostrei como alimentá-lo nem orientei a passear com ele duas vezes por dia. Eu não fiquei na sala de espera com você, quando ele fazia uma cirurgia numa clínica veterinária que um vizinho explicou para sua mãe como chegar. Eu não acompanhei o crescimento do cão e o seu; a sua passagem do tempo nos olhos de gratidão do cão de quem você era a referência mais forte, o amor mais instintivo.
  O abraço que você precisou, depois de se despedir da sua medida de tempo mais afetuosa e incompreensível, que latia partidas e abanava chegadas, não fui eu quem deu. Eu nem sei quem estava lá quando seu coração se dilacerou com a finitude da companhia, com a interrupção de futuro partilhado.

  Eu não comemorei a sua entrada na faculdade, mas tenho  muito orgulho porque ela aconteceu para você também. Eu não conheci seus colegas de turma, não fui à nenhuma festa de mãos dadas com você nem ficamos bêbados juntos numa noite dessas de liberdade vigiada.
  Eu não te ajudei com as resenhas dos livros e dos filmes, não fomos aos museus, exposições, peças de teatro, performances de artistas pós-modernos; não discutimos arte, vida, escolhas naquele tempo onde tudo é certeza líquida. Não descobrimos Baumann juntos nem Foucault e Freud.
  Eu não o vi receber o diploma e jurar alguma coisa que não faz mais sentido agora, eu não cantei o lábaro estrelado, o impávido colosso na noite da sua formatura; eu talvez passasse em frente ao auditório onde ela acontecia.

  Eu não segurei a sua mão nem disse que sentia profundamente a morte do seu pai. Eu não conheci o seu pai, mas sinto saudade dele, por você. Eu não vesti luto nas cerimônias de despedida dele e talvez estivesse em algum lugar da cidade, bebendo alguma felicidade genuína e passageira. Eu não levei café, leite, café com leite, chá de boldo, infusão de folha de goiabeira, suco de melão com hortelã, vitamina de banana com aveia e nenhum outro líquido que preenchesse o estômago e distraísse o coração da dor por alguns segundos. Eu não consolei, hidratei ou nutri o seu luto; eu não estava lá. Embora eu lamente e tenha dito tantas vezes que  também sinto muito a sua perda. Eu não levei rosas para ele nem para você; eu não decorei nem perfumei o seu adeus mais sentido.

  Quando você se apaixonou eu não o aconselhei, não dei dicas, não falei dos sonhos e das quedas. Não ouvi suas confissões de encantamento, suas dúvidas de iniciante na paixão ou seus desabafos de ciúme e insegurança. Eu não falei com você sobre as pernas trêmulas, o coração acelerado, o desejo de infinitude e os métodos contraceptivos e de prevenção às ISTs. Eu não disse que a primeira não era a última, que a segunda não era a última, que a quarta, a quinta e a sexta passariam, mesmo que parecessem para sempre.
  Eu não pari o seu filho nem ajudei a mulher que o  pariu a dar à luz a ele. Eu não estava do outro lado do vidro quando a enfermeira apresentou aos seus olhos marejados o rosto mais inesquecível da sua vida. Eu não fui personagem, presença nem plateia desse plot narrativo.

  Eu não estive, não estarei em muitas das suas memórias mais remotas. Mas eu apareço em muitas delas, em um segundo plano, tecendo também as minhas lembranças e escrevendo a minha história.   Eu ouvi quando me chamou por um nome que há vinte anos eu não escutava. Eu fui incrédula e corajosa ao café no Centro numa segunda-feira às quatro.
  E, de repente, seus pés instáveis no pedal, suas mãos macias no pelo do cão, a voz da sua mãe o chamando para almoçar, o som do mar, os passos do seu pai, a tosse do seu cão, o barulho dos amigos, os seminários em grupo, os adeuses e a chegada da outra vida me emocionaram numa tarde.

  Eu queria que você reconhecesse em mim, a imagem da foto da menina de vestido verde-água aos quatro anos, posando tímida e espalhafatosa. Mas você também não estava lá.
  Eu respondi ao seu aceno somente vinte anos e quatro meses depois. E, sabe? Nunca foi tarde. As histórias se cruzam no tempo que podem e nas chances que damos a elas de se encontrarem, olharem e partilharem uma mesma geografia e história.
  Não é tarde agora, não será em dez ou vinte anos. E como naquele Neruda que não me deixa esquecer do tempo nem do que amamos: "eu sou porque tu és". Ou, simplesmente, eu sou eu e você é você.



3 comentários:

Amanda Machado disse...

Grata pela partilha, história e a sua leitura...
Avante!

Paulo Abreu disse...

Uau!!! Nada a comentar. Uau!!!

Amanda Machado disse...

Haha....difícil deixá-lo sem palavras, Paulo! Gracias siempre...por todo.