sexta-feira, 6 de março de 2020

O texto onde habito

   A rua em que eu habito não é feita de pedras nem asfalto, não transitam carros nela e, ás vezes, é macia de andar. A rua é um caminho de memórias, uma alameda de flores murchas, que pedem água ao final de um dia inteiro de sol operário.
    Os passos que me habitam são cegos, porém seguros; são passos de um acrobata em corda bamba cujo medo está sempre suspenso sobre as nossas cabeças. Andamos por cima do nosso medo e estamos sempre esperando aplausos na chegada.
  A rua em que habito guarda um menino chamado Francisco, uma bola de futebol que quebra vidraças e roupas penduradas no varal, que balançam, quando suspiramos.

  A casa em que eu habito é um templo com paredes de vidro, sem portas e janelas. A casa em que habito é feita de bonecas russas: moro em várias de mim, num tempo só. Eus de muitos tamanhos, em que a maior abriga a menor; em que a maior liberta a menor. A casa em que habito não está nunca terminada. Tem um projeto de varanda para ver a lua e o céu em noites estreladas; tem um quintal com um pé de couve esperando outras hortaliças e um cachorro marrom que só vai latir quando tiver um nome. A casa que me habita não cobra aluguel, não paga impostos e não assina apólices de seguro.

  O tempo que habita em mim nunca demora a passar, mas também não é o caso de voar. Permanece atado ao solo, me seguindo pelas alamedas de flores murchas até a minha casa de muitos eus. O tempo no qual habito, o ontem não é pretérito, o está sendo não é só presente e a promessa não é um futuro.
  O tempo em que habito me vê passar e não passa, me vê envelhecer e continua jovem, se despede sem nunca chorar e depois que eu parto, dorme em outras camas, sem nunca lamentar o fim. O tempo que habita em mim é diverso do calendário em cima da mesa, ambos coincidem somente no número, mas os dias da mesa são demasiado retos e cinzas, o outro é um amontoado de linhas tortas, coloridas e embaraçadas.

  As lágrimas que me habitam são prática e teoria. Estão nas ruas, roupas, gestos cansados, relógios iluminados, bíblias de pecadores arrependidos, corredores de supermercados - nas gôndolas de amaciante - e também nos livros de filosofia e na mais amorosa poesia. São salgadas e insípidas; são convidadas e silenciadas.
  Das lágrimas em que habito, ninguém tem culpa, nem os falsos amores, nem as religiões que não me deram deus algum, nem as desilusões cotidianas, nem o canal lacrimal muito aberto.
  As lágrimas que me habitam são mais alívio do que penitência, mais contentamento do que revolta. São pequenas gotas melancólicas que escorrem e secam muito antes de chegarem ao meu peito.

  As mãos que me habitam duram mesmo quando não mais me querem. Duram bem mais que uma noite, um ano, uma década. As mãos em que habito não me sufocam, apertam ou destratam; são mãos macias de trabalho leve e também cheias de calos e asperezas do labor inevitável.
  As mãos em que habito, têm unhas esmaltadas e anéis dourados; unhas curtas e resto de graxa sob elas.
  As mãos que me habitam seguram a minha solidão, tapam o sol com a peneira, me tiram para dançar quando toca uma música bonita, trazem a bebida, a comida, as flores, as cartas, os cartões, as calmarias e os vulcões e regam, todas as manhãs, a menor de mim.

  As histórias que me habitam carregam culpas, se vestem de luto e não se olham no espelho durante toda a quaresma. As histórias em que habito me ensinam perdão, amor-próprio, curas profundas, vestem vestidos floridos, passam batom vermelho e se namoram, olhando para todas as superfícies espelhadas da cidade.
  O texto em que eu habito, nasce às três da manhã, ao meio-dia, às dezoito horas e cinco minutos e nunca assinou o seu nome em um caderno de ponto. O texto em que habito não conhece burocracias, garantias, espumantes ou cachaça; são abstêmios e ingênuos os textos que eu levo para passear no calçadão aos sábados pela manhã.

  Nenhuma casa antes ou depois da minha. Nenhuma alma maior ou menor que a minha. Nenhuma dor que console a minha ou que diminua a do outro. Nenhuma mão cujo adeus dure para sempre. Nenhum tempo que caiba em um calendário. Nenhuma lágrima que o livro de filosofia responda sobre a sua origem  ou a poesia a deixe entrar sem, ao menos, perguntar o seu nome.
Eu habito o que me habita; me protejo e me aqueço entre amores e memórias de uma rua que não tem pedras , asfalto e trânsito. Por enquanto, de concreto, eu não sei ter nada.