me levam ao outro mundo? Quantas me fecham aqui? Apartamentos apertados apartam-nos dos outros agora; ou nos aproximam de nós mesmos? Acordar é sem rotina, sem ônibus, sem sonhos embaçando os vidros da condução, sem metrô ou relatório, sem café com açúcar ou adoçante, sem chefe, sem ascensorista, cumprimentos burocráticos, sem barulho de persianas e água no rosto no meio da tarde, sem futuro na agenda; isso tudo só por dois, três dias, três semanas ou três meses.
- Vai passar.
Ninguém aponta nenhuma matemática exata. E o que tem para voltar? E a quem tem para voltar? Alguém a espera? Quem? Alguém que você espera?
E o que tem para terminar, para continuar ou começar? Sente saudades ou medo? Sente-se prisioneira de si no apartamento ou ele é a única liberdade dos últimos anos? Quem faz falta? Quem não faz mais?
Resistir aos parques, aos passeios com o cão, às corridas matinais, às galerias no Centro, aos passos sem distância calculada. Resistir ao choro, à raiva, às medidas ignorantes do mandatário imbecil, às perdas inevitáveis e ao medo, principalmente ao medo.
Limpar os armários e lavar as mãos com sabão e água; higienizar os tapetes e lavar as mãos com água e sabão, pendurar as roupas no varal, esfregar a sola dos sapatos e tirar cada minúscula geografia deles - não guardarão território algum - e lavar as mãos com água, sabão e esperança.
Libertar os animais domésticos, conversar com as plantas da casa, ainda mais felizes com a presença humana; como podem florir em tempos tão obscuros? Ver o sol, desejar o sol e adiar o desejo. De quantos adiamentos podemos viver? Quantos adiamentos cercam a minha vida antes desse plástico bolha? Quantos eu não quero mais?
Sentar com destino na mesa da sala e não ter pressa, olhar para ele e ser devassada pelo olhar do único a ter todos os meus tempos.
- Ninguém mais me vê como você.
Não perguntar sobre o que será. Não rogar previsões. Não afastá-lo com interrogatórios intermináveis. Só olhar. Profundamente. Grata talvez. Muito grata com certeza. Não ter relógios, não tentar ter certezas, me deixar ser invadida pela tarde melancólica e silenciosa dos dias que duram mais do que os outros do qual sou ainda menos dona.
- Eu não tenho nada.
Pedir licença e lavar as mãos. Convidar ao destino a lavar as suas também.
- Quer vir?
Dividir o lavatório, o sabonete e o reflexo no espelho. Não temos pressa. Afastamos as expectativas e eu peso menos a cada dia, mesmo sem dieta e exercícios.
- É estranho, mas eu tenho dormido melhor.
O destino me ouve compreensivo, mas se nega a qualquer juízo.
É espera; é desamparo e também medo. É espera; é apaziguamento numa voz de longe, num chá morno, numa página tão triste e bonita do livro e também esperança.
O destino é um hóspede que não dá trabalho. Sabe onde está o pó de café, o açúcar, a tolha de mesa, os guardanapos de papel, o xampu e o vidro de álcool. Fica muito à vontade, circula entre os meus livros, panos de prato e resoluções de confinamento: ir mais à praia, estudar mais o que eu gosto, conversar mais com a minha mãe, jantar mais com a minha irmã, ir ao cinema uma vez por semana, ter um amor correspondido - não só de sentimento, mas de passo. Minha mãe sempre quis aprender a dançar, meu pai não; minha mãe não dança, eu vou.
Tudo pede paciência e sugere que buscar por uma distração do pensamento pode ser menos angustiante; estourar as bolhas de um plástico, se eu tivesse um. E se estamos em um? Guardados em metros de plásticos com bolhas de ar e uma fita com a inscrição: frágil. Aguardar os solavancos do caminho, permanecer na parte de trás do caminhão, sem conhecer o itinerário e o tempo da viagem.
Torcer por algum destino final e só então, depois reconhecer o que restou. Recalcular as sobras: remendar ou jogar fora? Há conserto ou é melhor tentar um novo? O que é verdadeiramente frágil, a matéria ou o apego?
Chegaremos do outro lado em um domingo, final de tarde, com a cidade inteira silenciosa e mansa. Vamos reclamar da segunda-feira e tomaremos um banho, para não nos atrasarmos para o trabalho no dia seguinte.
Quem nos abrirá o portão já sabe que partimos, alguém, que nos dirige às cegas, também tem medo de não chegar inteiro.
Esperar pela passagem do inimigo, que pode não vir por esta rua ou vai bater à minha porta. Não saber, sabendo - é o mote de um Romance do Marquèz. Só esperar.
Esperar pela única sentença possível nesses dias estranhos. O destino levanta-se da mesa e com a voz rouca e pacífica anuncia a fatalidade do veredito:
- Nada será mais como era antes.
Não tenho medo, guardo mil esperas no armário recém-higienizado da cozinha.
2 comentários:
aí tu sensibiliza a ariana aqui de um jeito...
(minhas mil esperas estão na minha mala pronta..rs). já já isso passa!
Que linda! Arianos sensíveis me comovem...rs
Sim, vamos passar por isso sim. E seremos mais fortes e maravilhosas...rs
Postar um comentário