sábado, 4 de abril de 2020

Ainda vai ter amor depois da fenda profunda deste tempo?

  Há quase vinte sóis não nos temos; são ventos e viagens que não tomamos mais juntos. Eu sou mais da casa do que ela é minha agora. Estou submetida ao teto, paredes, chão e janelas que não construí. Não bato portas atrás de mim, não varro a poeira para debaixo dos tapetes e a roupa está sempre limpa, mesmo que eu não tenha varais nem quintal.
  Decerto que existem  ainda as mensagens, os suspiros, os ruídos na comunicação, os ódios temporários e o ciúme das supostas intenções  também não nos faltam.
  Não ter urgências cotidianas, nos afasta da previsibilidade e abre espaço para imaginação, para a fruição dos desejos e para os sonhos sem data para realização; por isso a minha casa nunca esteve tão grande.
  Certeza não há. O que existe são cortinas sem poeira, cabelos sempre limpos, barriga molhada ora da pia ora do tanque e livros lentamente devorados.

  As perguntas entram pelos ralos, frestas das portas, pelos pequenos buracos do muro da varanda. Ninguém tem mesmo a resposta, sabe? Ninguém. Quando respondem, logo mudam de ideia. A constatação mais remota é cada vez mais aparente: não sabemos de nada.
  A louça é menos urgente porque não tem ônibus, não tem ponto para assinar, não tem chefe nem promoções na carreira agora. A louça é mais urgente porque não tem um outro mundo para organizar que não seja esse.
  O prato é branco, a angústia é a laranja em gomos colocada em cima do fogão; uma de cada vez trazida à boca, depois de cada copo lavado. E ainda vai me amar depois de tantas luas não partilhadas? E ainda encontremos nossos olhos depois dos sóis desperdiçados, das mensagens em caixa alta não respondidas, depois de eu tentar analisar friamente o que não pode ser friamente analisado?

  E se eu perder todos os meus mistérios, nesse intervalo entre os nossos tempos? E se eles forem revelados na escuridão dos dias e na aparente claridade das redes? Um vídeo, uma foto, um print, uma história escondida? E se aparecerem outros mistérios, como vai poder me amar para além das opacidades?
  E se for eu a desvendar os seus segredos? Se eu ousar falar deles, escrevê-los, pintá-los, denunciá-los em uma faixa na sacada do meu prédio? Se eu contar a quem amou, que amou? Se eu enviar uma mensagem para a sua terapeuta, quem ela vai achar mais necessitado de consulta? Ainda vai poder mais me amar com os desequilíbrios e as inconstâncias?
  E se você também lava pratos e chupa laranjas, enquanto pensa no que seremos depois dessa pausa? O que pensa de nós ou de você sem nós? Ou de mim? Só. Sem você e só.

  Depois da pandemia e de tudo o que virá depois dela, as crises políticas, éticas, econômicas, será que ainda haverá amor ou desejo de amor entre nós, de um para o outro? Ou vamos tentar outros caminhos e novos afetos? Um amor não visto também desgasta? E se for como o elástico, que mesmo sem uso, enfraquece? Sozinho, sem testemunhas e quando precisamos que segure, ele falha, desiste, não está mais para o que nasceu.
  E depois de toda a sordidez, desmandos, enganos, vidas sacrificadas, seremos fortes o bastante para ainda nos querermos? E se eu sucumbir por uma, duas ou dez semanas e não limpar a casa, não lavar a louça e não oferecer a você mais músicas ou trechos dos livros que eu não lerei? Ainda será capaz de me amar assim? E eu, como eu saberei amar depois de não conseguir, por alguns instantes, não amar ser uma  ssobrevivente?

 Haverá amor, depois da pandemia, como o dos meus pais? Haverá vestido branco e bolo com noivos no topo ou poema num quarto de hotel barato em alguma cidade da América do Sul, sem chuva de arroz? Ou só cansaço?  Haverá seu corpo e o meu; sua alma pela minha boca ou nada além de ausência consentida?
  Vai me amar depois de eu escrever mais sobre o gato do que sobre eu e você? Vai saber me amar se eu disser que o gato é quem é imprescindível para a minha alegria comezinha? Vai me amar depois de eu beber todas as garrafas de vinho, sozinha, que eu prometi guardar para as nossas comemorações? Vai me amar depois de dezenas de mensagens apagadas antes de você ler?
  Vai poder me amar depois da vida ser outra, das segundas-feiras não parecerem mais as segundas que partilhamos nos últimos anos? Vai me amar se o vendedor de yakisoba não abrir nunca mais o trailer em frente ao meu prédio? E se os nossos olhos forem novos? Se a sua janela não estiver mais voltada para a minha, saberemos nos olhar de novo, com amor?

  Vai me amar depois desse hiato de tempo, se eu enlouquecer ou se eu curar a minha loucura? Vai ainda poder me amar se eu me tornar demasiadamente sensata e lúcida?
  Se os mercados falirem, se as lojas não empregarem mais, se ninguém frequentar bares com música ao vivo, lojas de discos e livrarias, se nas escolas proibirem abraços, saberemos encontrar aquele amor de antes? Ou inventaremos um novo? Uma mesa para dois ou outro bar com outro par?
  Se encontrem a vacina, se descobrirem o antídoto e pudermos voltar às ruas, você virá me encontrar ou vai desviar do caminho? Você ainda vai saber o endereço da minha casa? Você ainda vai querer saber o meu segundo nome ou vai fingir que eu me chamo pelo único?

 E se nada disso acontecer? Se nada absolutamente mudar em mim depois de tudo, se eu acordar numa segunda-feira e só ir para o trabalho, você será capaz de ainda me amar? E eu amarei você e a mim?
  Ainda vai ter amor depois de eu abrir a porta, sem máscara, e não lavar a xícara do café para apanhar o ônibus das sete? Ainda haverá desejo de amor, quando  olhar para mim e constatar essa franja torta e desesperada que eu cortei sozinha no banheiro hoje à tarde?
Ainda haverá amor depois de não ouvirmos mais a voz do amor juntos num mesmo tempo? O que faz o amor, quando a vida afasta os amores? O que faz o amor quando os risos não ecoam pelas mesmas paredes e amar parece tão longe e ineficiente depois de assistirmos ao telejornal da noite?
  Que as economistas, as sanitaristas, as médicas, os pastores e os ativistas não julguem o egoísmo da minha questão de sábado, mas ainda haverá amor, o meu, depois da fenda colossal aberta nesse tempo? Você vai poder me amar na minha agonia insensata ou prudência eventual nas crises desse nosso tempo?



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