quinta-feira, 9 de abril de 2020

Para que o tempo passe, mas para que ele nunca morra

  Se escrevo é para enfrentar o medo sem exércitos treinados, sem armas, sem punhos cerrados, sem cenho franzido, sem ódio algum. Enfrentar o medo como quem dança, como quem  acompanha uma visita até à porta e pede a gentileza de trancar o portão, depois que sair, para que o cão não fuja.
  Escrevo para convidar a coragem, a apaziguadora e  sutil companheira de caminhadas longas, itinerários incertos e subidas escuras e escarpadas para um chá. Só um dia sem riscos e mistério. Como quem cuida da avó mais delicada de casaquinho de crochê.
  Escrevo com  o medo de um lado da mesa e a coragem do outro. Escrevo e olho para as duas hóspedes com a mesma gratidão resignada, de quem sabe que ambas são companheiras de qualquer tempo e se estiverem juntas não me deixam cair de penhasco algum. Escrevo para fazer acordos, diplomacia, acalmar ânimos e nunca ser só.

  Se eu procuro enfileirar palavras, não é para que não fujam, me obedeçam ou nunca me traiam. Pelo contrário, quero libertá-las de só serem palavras. Escrevo para procurar um lugar no mundo que cada uma delas faça um sentido completo, por algum segundo que seja, e que por isso, salve alguém da dúvida, da solidão, do desencontro com o amor, da resposta que não chegará.
  Se eu consulto o dicionário em busca de um nome para o sentimento, não é por não ter o que fazer com as horas do meu dia, é pela urgência de dar às horas um sentido para que passem, mas não morram sem memória. Como quem planta rosas em túmulos. Como quem escreve com a mesma mão o obituário e a carta de amor.
    
   Eu escrevo para que um rapaz tímido se enamore tanto de alguma frase que acredite estar apaixonado pela autora. E que esse sentimento tão ingênuo e fugaz aqueça os dedos dessa autora, enquanto ela assiste ao pôr do sol, sentada em uma cadeira de vime, às vésperas de completar seu centésimo segundo aniversário.
  Eu escrevo como quem lê traduções de letras de músicas estrangeiras em um programa de rádio noturno, para que convença almas desanimadas de que elas, na verdade, amam. E que tais almas, ao ouvir uma tradução tão melancólica, se sintam tristes por não terem a companhia do amor, mesmo que seja o inventado. Eu não escrevo por audiência, eu escrevo para a ter a minha voz grave, invadindo as casas dos que desejam sem saber o quê, dos que querem muito alguém que ainda não conhecem.

  Se eu escrevo, é para que o fogo queime, mas as palavras não virem cinzas. Para que a água invada, mas que não deixe as frases submersas por muito tempo. Eu escrevo em busca da ilha, da terra, do tesouro, do herói, da sereia, do boto, de Dom Sebastião, de Inês no trono; por todas as lendas, as invenções que se tornam legados.
  Se eu escrevo, é para que a palavra seja a espada e a agulha; que abra caminhos, vísceras, possibilidades, mentes e também, remende, amarre, costure feridas, mágoas e afetos puídos. Como quem educa um aluno, com afeto e também com rigor. Como quem ensina o amor: é preciso se abrir em carne viva e aprender a se curar.

  Se eu escrevo, é para que um homem velho e muito ativo tenha alguma distração nesse retiro forçado. Para que ele me leia, como ninguém mais pode, para que ele marque as suas páginas favoritas e depois as reproduza como se fosse uma história cômica de alguma conhecida sua. E acabo por ser completamente uma conhecida sua.
  Eu escrevo para retribuir o pano de prato que a menina fez na aula de pintura e que me deu como um regalo por eu ser eu. Eu escrevo pra que ela um dia me leia e saiba que a sua pintura coloriu um século da minha existência.
  Eu escrevo para ecoar os sonhos que nunca se realizarão, mas que são bonitos em imagem e narrativas. Escrevo para anunciar que impossibilidades não são linhas finais, que tudo tem seu tempo e que às vezes perdemos a visita de um pássaro porque nos ocupamos do leite fervendo e que é assim mesmo; é esse o tempo.

  Eu só escrevo porque  não sei tocar violino, não aprendi a fazer o plié, não faço pratos de cerâmica, nem malabarismos com taças. Eu escrevo porque não sei trocar curativos de um ferido à bala ou por arma branca, embora eu não desmaie quando vejo sangue, não sei a ordem entre o algodão e a gaze; qual é o primeiro?
  Eu escrevo porque não sei se o carro cabe na vaga, não sei se o volume da água oxigenada é suficiente para clarear o cabelo, não sei cantar mais de três músicas infantis, porque não sei com que peça do aspirador de pó eu limpo as cortinas, o tapete e o sofá; embora eu saiba que o mesmo do tapete serve para as cortinas.  

  Eu escrevo para tentar salvar a amiga do outro lado do oceano, ilhada por medo, insegurança e saudade. Eu escrevo para que ela sinta o beijo sereno da mãe, o abraço quente do pai, os afagos escandalosos das irmãs e as cócegas leves na barriga que os sobrinhos retribuem.
   Eu escrevo para tentar alentar o vizinho desamparado de elogios e vozes suaves que indiquem músicas, leituras e o façam decorar os itens, da casa, em falta para buscar no supermercado. Eu escrevo como quem distribui livros pelos bancos de ônibus e praças da cidade e nunca saberá se quem os tomou leu ou jogou fora.
  Eu escrevo como quem participa de uma roleta russa sem bala, qualquer movimento é um tiro vazio, sem som, sem sangue, sem riscos, sem traumas, sem fins.
   Eu escrevo por nada e por tudo; ao mesmo tempo. Para cada alegria e dor descomunal. Eu escrevo para continuar um filme, que eu não queria que acabasse; um livro, porque precisei de mais um capítulo para me despedir da história; um amor que não tem mais lugar na cama, mas que é impossível fechar a porta sem chorar. Eu escrevo para passar o tempo sem nunca matá-lo.




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