
Ainda que eu saiba que nada regressa nem vai embora definitivamente, hoje. Porque é um tempo de espera, porque os transportes públicos estão limitados e o ar contaminado de medo e incertezas.
Ainda que portas e janelas sejam as únicas medidas dos meus dias - as janelas abro e fecho várias vezes, como se esperasse alguma iluminação de outros mundos, as portas permanecem quase inalteradas de estado. Ainda que eu tente não me render a essa condição de extrema intimidade com cada passo meu e resolver, para sempre, colocar sapatos menos apertados - um número a mais quem sabe?
Ainda que eu tente não ceder aos instintos das resoluções definitivas nem às sensibilidades muito afloradas pela proximidade que o espaço apertado me possibilita, como ouvir os meus batimentos cardíacos, os sons da minha respiração e entranhas, sentir a água passando pela garganta, traqueia e se espalhando por toda a geografia desconhecida do meu corpo, sentir meus cheiros, ver os meus sonhos no espelho do banheiro, sem edições e filtros. Eu sei que tudo acaba e começa hoje.
Sem transportes, sem testemunhas, sem formalidades de roupas sociais e assinaturas em cartório, casamentos acabam e começam hoje, alguém nasce, outro alguém se muda, morando na mesma casa, alguém foge, de outro olhar ou de si, outro é sequestrado, alguém já não é mais.
Transporto os livros de uma prateleira à outra, depois, de um cômodo a outro, de uma existência antiga a outra, tão recente, só porque são eles que dão sentido ao lar. Mudo as fotos dos porta-retratos; escondo alguns nas gavetas. Troco as roupas de lugar, elejo as que não podem mais ficar e as que nunca usei, mas pretendo; noutro país, com outro corte de cabelo e seu mudar de nome, para finalmente caber na roupa, quem sabe? Anoto itens que estão prestes a acabar, num bloquinho grudado à geladeira, e sinto a casa ainda mais atada à mim do que eu à ela.
Somos fortes, embora pequenas - estes dias, ela menor do que eu - sem muitos recursos e sofisticação; somos filhas pobres, eu e ela. As rachaduras, os pisos arranhados; o cheiro de lavanda, água sanitária e cebola impregnados em nós duas; o valor barato dos nossos custos e que, mesmo assim, estamos sempre em dívidas. As melhorias que adiamos, as pinturas que planejamos fazer antes do final do ano, as lâmpadas baratas que nunca queimam para serem substituídas.
Adiciono pó de café, ração para o gato e sabão em pó à lista. Não é preciso olhar o relógio, os minutos não fazem a menor diferença; a não ser que eu cozinhe um ovo para o almoço. Não é preciso desmarcar encontros nem desmascarar mentiras; não há necessidade alguma de evocação de verdade explícita, aos sábados em que ficamos em casa. É preciso não escolher futuro próximo; só anotar o que vai acabar antes de terça-feira, para ir ao mercado amanhã ou na segunda.
É preciso não odiar a casa, só porque se chora nela. Não achar que a infelicidade tem paredes próprias, que as lágrimas pertencem ao lugar em que caem. Também não se apegar ao chão de madeira, à pia antiga, que conserva sempre tão limpa, porque sorriu, amou, se encantou com algum par que morou aqui algum dia. É preciso saber que a casa também morre todos os dias.
Algumas horas o vizinho parece entender a minha melancolia e quase não grita, me deixa tranquila no colchão de molas, silenciosa e lânguida; de camisola ainda. Outras horas é um completo desrespeito ou uma tentativa de mudar meu estado de ânimo; são gritos, gargalhadas muito altas, panelas que caem ao chão, música eletrônica, as provocações à cadela que despertam o seu instinto mais arredio e barulhento.
- Não sei como você aguenta esse barulho.
Ela já disse algumas vezes.
- Não é sempre assim e ele está no direito dele, na casa dele. E eu não preciso de muito silêncio.
A casa dele é grande, mais cara do que a minha e ele mesmo troca os pisos, pinta as paredes, construiu piscina e churrasqueira. Ele não tem tempo para ouvir sua respiração e entranhas, eu acho. Não sei se vê o seu sonho refletido.
Do que conheço mais agora do que ontem é que sou menos doméstica do que me imaginava; sou mais romântica do que eu desejaria e tão resiliente quanto eu precisarei. Escoro o último livro da fileira com um gato vermelho que me trouxeram da Espanha. Rabo em riste, brilho de purpurina duradoura, leve e dono de si, o gato vermelho de madeira. O outro, o amarelo, que transporta os ares da rua para a minha varanda é dono da cidade inteira. Ele me observa e é o único que sabe da minha mudança que não é aparente a olhos humanos.
A tarde passou com a casa e eu buscando ordem e mais vida, mergulhadas no cheiro do bolo de banana, no café de filtro de pano e na aguardada chegada do amarelo felino.
Não é quanto tempo ainda falta. É o quanto já temos; nos livros, nas fotos, nas listas, nos sonhos, nos pensamentos sobre si. A casa respira mais profundamente quando não contamos os minutos. Acendo as luzes e antes de fechar a janela, respiro o ar da noite, frio e ancestral; esse ar que não parece o mesmo do medo das ruas.
Abro a última dobra do lençol, apago a luz e repouso sobre um silêncio ainda mais profundo. Os extremos do dia são os mais difíceis, mas também são os melhores. A casa em mim; tudo brilha e pede perdão no escuro. O dia morreu. Amanhã é o futuro que nasce; estejamos prontas ou não.
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