Vontade de atravessar esse deserto de afetos nossos e amá-la no lugar dela. Sem pedir que tome um banho, que passe um perfume ou batom. E de me deitar ao lado dela, talvez no chão e velar a sua insônia líquida, tanto choro e eu, enxugando o piso. Sem pedir que pare, sem pedir nada, sem sugerir nada, sem falar nada. Só amá-la em todo o seu merecimento. Queria ser quem entregasse a ela um buquê de justiças perfumadas, um soneto de ternura e reconhecimento por ela ser ela; em toda a sua integridade e cansaço de amor.
Vontade de ultrapassar essas nossas diferenças e me sentar ao seu lado na mesinha da cozinha com telhado colonial, olharmos juntas para o vazio no mundo, que na verdade está todo nela, dar o miolo do pão para a cadela e me levantar para esquentar o leite com achocolatado do filho que vai se levantar em alguns minutos; tão faminto de pão quanto nós de olhares e escuta.
Vontade, muita, de esquecer que nunca fomos amigas, de que ela nunca respondeu aos meus cumprimentos e dizer que sei de toda história, acompanhei e não esperava que fosse assim tão rápido, tão nesse estalo de tempo, nesse estampido seco de palavras urgentes, sem um milímetro de poesia:
- Ah é assim? Então vou embora.
E foi, sabe? Por decisão dela e escolha dele; esse amor ainda tão recém-chegado à casa vizinha e que mudou completamente os rumos do meu isolamento. Um amor tão barulhento, tão alienado da doença do mundo, tão esperançoso em mim; e foi-se. Levou os sorrisos, a mortadela, a cômoda e até os espelhos do apagador, os quais ele havia trocado na quarta-feira, levou.
Vontade de pedir uma parte nessa sinfonia angustiante de choro e soluço e dizer que não vai ser sempre assim, sem ter certeza nenhuma, é claro. Disso eu também não sei. Talvez se repita, se repita incansavelmente ao longo das nossas vidas de sonhadoras errantes e depositárias de ilusões em cestos reais demais.
Vontade de dividir a sua culpa pela entrega e dizer que eu também acreditei na promessa, não naquela que ele repetia para ela, mas naquela outra que catapultam todas nós para esses amores inventados: a de que existe alguém a fazer par com o seu vazio. E se não?
Se for mesmo a nosso destino seguir arrastando essas ausências pelas gôndolas de supermercado, consultórios odontológicos, salões de festas barulhentos e coloridos, pontos de ônibus, filas de banco, bancos de missa, corredores de cultos, esquinas de terreiros, lavatórios de cabeleireiros. E se for assim, falo ou não? Falo em outro tempo, talvez.
Vontade de dizer que eu ouvi toda a conversa com a sua mãe:
- Eu tinha prometido, mãe, falar alto com o meu filho jamais. Não ia deixar uma primeira vez, nada nem nunca. Não deixei. Pois ele nem olhou para trás, pegou tudo o que trouxe ontem e hoje, até as compras de dentro da geladeira, os espelhos dos apagadores, a cômoda, as roupas e foi. Para mim não tem mais, mãe. Não tem volta. Cinco meses, mãe! É o segundo que vai embora (suspira).
Vontade de dizer que é o segundo e que talvez haja um terceiro, um quarto e um décimo. Vontade de dizer o quanto eu a admirei pela decisão tão dura e irrevogável. E dizer que vão embora não é pela dureza das suas sentenças, mas pela cegueira congênita, pelo defeito nos olhos deles, que não veem beleza na bravura dela, na urgência de proteger o filho e o amor por si.
Ele amava a comida que ela fazia e rejeitava os dedos com cheiro de alho. Amava mãe e filho em um retrato, sem som, sem desejos, sem pensamentos próprios e distantes dos dele. Amava a mulher de batom e cabelo escovado, não tentava entender suas ideias nem ouvir o que os lábios pálidos defendiam.
Esse segundo homem ausente queria amar uma casa que o acolhesse, uma mulher que se calasse, um menino que o obedecesse; não amava uma casa de muitos climas, uma mulher de muitas vozes, um menino de diferentes autonomias.
Esse amor desistente não soube pedir desculpas, nem admitiu que errou; esse amor falido de paciência, encontrado em uma rede social, quer apertar comandos e encontrar deliveries, sem trabalho, sem esforço e sem lastros de memórias e responsabilidade pelo que o outro sente.
Vontade de ser uma voz importante para ela e dizer do meu orgulho pela decisão de maternidade resoluta dela e de entrega à sua própria vontade, mas dizer também que me sinto tão culpada pela sua dor nessa decisão. Porque quase nunca sabemos o sofrimento que carrega alguém que admiramos, justamente nessa nossa admiração.
Vontade de partilhar com ela o meu tempo; as suas músicas, que são tão diferentes das minhas; as cenas de novela que eu nunca assisto, mas ela gosta; as comédias dubladas com as quais ela gargalha desesperadamente. Vontade de ser solidária com autoria; me apresentar, contar que sofro e me alegro com ela, que escrevo e tenho expectativas quanto ao filho que ela protege e ama tão genuinamente.
Vontade de colocar a cabeça para fora da janela e gritar:
- Vizinha, esse homem nunca enxergou você! Você é incrível, vizinha... Não tem culpa nenhuma pelas partidas desses homens e a dor vai logo passar; com chá, gelo, escalda pés, um filme oriental e a vontade de plantar roseiras no canteiro que ele cimentou.
Hoje ela chorou menos, riu um pouco, não falaram dele na casa. Hoje a cadela saiu na chuva e ela a resgatou, o menino contou uma história longa e ela suspirou enquanto fechava a janela, evitando olhar para mim, como sempre fez.
Amanhã cedo vai ter barulho de marreta e talhadeira, suspeito. A mulher e o filho, abrindo, de novo, uma terra para cuidados de flores. O jardim incansável da mulher cujos homens não puderam vê-la, ao menos esses, ainda.
2 comentários:
Eita! Eita! Eita! Assim fica difícil fazer a lista dos preferidos...rs. Amei a música! Quero ouvi-la em Paris! Sonhar não custa...rs
Que bonitinhaaaa!!! Obrigada, Clemezinha! Achei bem linda essa música também. Paris é logo ali. Vai sim. Vamos!
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