Dodora não gostava de ar condicionado, eu sentia muito calor e pedia sempre para ligá-lo.
Dodora não gostava de posturas de inversão e eu fazia duas ou três todas as aulas.
Dodora era septuagenária, tinha um metro e cinquenta seis e gostava de acordar cedo e chegar com calma. Eu me levantava atrasada, atravessava a avenida desesperada e meus braços não podiam ficar completamente esticados, sem tocar os rodapés ou algum móvel da sala, quando fazíamos posturas no chão. Mas as ausências de Dodora, muito raras, me faziam menos concentrada às aulas. Dodora era o meu ioga. Minha calma, minha gentileza, minha vontade de ir muito longe no tempo e de, como Dodora, ser ativa e sociável.
Dodora olhava para mim como quem contemplasse o mar. Olhar longe, demorado, paciente, às vezes com espanto, muito generoso e nunca indiferente; sorria sempre e me desejava muitas coisas: um bom dia, um ótimo final de semana, bons ossos e um namorado muito bonito e inteligente ( - Muiiito bonito, minha filha. Muiiito!).
Dodora era toda em mim o que eu não podia ver. Duas vezes por semana eu tinha o privilégio do olhar que me resgatava de um lugar que eu nem sabia estar perdida. Dodora falava por ela, bastante, e até por mim, que quase não encontrava espaço para falar em uma turma com seis mulheres, todas acima dos cinquenta anos. Dodora emendava perguntas e não tinha muita paciência para ouvir as minhas respostas até o final; e eu gostava de nunca ter que ter respostas.
Dodora, que me desejava um namorado bem bonito; porque para ela possivelmente era o melhor desejo, ainda que eu quisesse ser a própria Dodora, era solteira, independente, tão liberta e com articulações flexíveis aos setenta. Era a amiga inesperada, mas muito necessária, e sempre com muitos presentes: biscoitos caseiros, pedaços de bolo, goiabada, um cachecol e dois pares de meias de lã, feitos por ela em três invernos diferentes.
Dodora era a amiga que perdoava meus defeitos e destacava qualidades que eu nem sabia ter. Dodora foi todo o olhar que eu precisava sem saber.
Dodora minha avó, minha mãe, minha irmã, minha filha; Dodora a leitora dos meus olhos e alma e só depois, livros. Dodora minha volta em mim em 60 minutos, duas vezes por semana.
Dodora, que só sabia me ver com olhos de futuro que eu não podia, não chegou até esse tempo. Não nos despedimos; nos separamos quando ela precisou se afastar das aulas de ioga, depois de um acidente doméstico e eu desisti, antes do previsto retorno dela, para dormir mais e correr menos. Mas ela seguiu sempre sendo o meu ioga, ativando meu plexo solar, abrindo meus chakras, aquecendo minhas inspirações e me ajudando a contar as expirações.
Dodora, que tinha medo que eu machucasse o pescoço quando fazia as asanas invertidas, caiu varrendo a casa e nunca mais voltou ao ioga. Dodora que tinha articulações flexíveis, também tinha ossos frágeis.
Mas nunca me afastei do olhar de Dodora; ainda me sinto oceano sob os olhos de ternura e curiosidade dela. Quando me pediu uma dedicatória no livro que eu escrevi e ela ostentava com orgulho; me declarei sem saber que era a última correspondência que teríamos.
Às vezes, se o mundo parece não ser um lugar razoável, me lembro de que Dodora está protegida afastada dele, mas noutras vezes, se a vida é demasiada bonita, lamento que ela não esteja com seus olhos gentis sobre ela.
Dodora me acompanha em todo espanto que eu tenho no mundo, e são vários e cotidianos: céu alaranjado de julho, as ruas tranquilas de domingo, as mãos dos alunos apontando um lápis e escrevendo suas primeiras histórias, os olhos de amor dos namorados bonitos, os olhos de sororidade das amigas de muito longe.
Escolhi Dodora talvez um pouco depois dela me escolher. Sinto tanto a sua falta, Dodora, queria que estivesse quando eu voltasse da minha vela perfeita (que agora é um pouco torta, desde que recomecei o ioga). A chama não tem pavio...da música, Dodora. A vela é ainda a minha postura favorita.
Olho para o céu e suspiro por Dodora, nesse azul ela também mora e nesses vazios, em que a vida também acontece, ela me acompanha e preenche. Eu fui o mar, ao menos uma vez para alguém, e ainda sou quando Dodora parece me olhar. Dodora, o mundo que você deixou é o mesmo e tão outro, dói e é bom, como você devia saber.
Dodora, você foi o meu encontro em um intervalo pequeno de tempo, mas definitivo. Porque ainda partilho essa vida com você, que seria capaz de vê-la como ela merece. Dodora, no meu ioga sempre terá você, o meu ioga sempre será você e para você.
2 comentários:
“Viver (na minha compreensão) é existir dentro de um conceito de tempo. Mas relembrar é cancelar a própria noção de tempo. Toda lembrança, não importa o quão remota, acontece “agora”, no momento em que é convocada à mente. Quanto mais algo é relembrado, mais vezes o cérebro tem chance de aprimorar a experiência original (...)." Ignazio (Asterios Polyp, David Mazzucchelli)
Lindo de tudo. Dodora também é agora. Todo amor para vocês!
Que trecho mais lindo! Que comentário mais delicado e tocante. Ando especialmente mais sensível nos últimos dias; e essa sua partilha me fez chorar a tarde inteira. Que bom que Dodora não é só passado e não é só para mim.
Grata a David Mazzuchelli por apontar caminhos e descrever profundamente esse meu sentimento que eu não poderia explicar melhor e grata a você, Dani, por trazê-lo para mim. As palavras sempre vêm ao nosso encontro para nos iluminar.
Todo amor para nós, sempre!!!
Postar um comentário