quinta-feira, 28 de maio de 2020

É da ordem dos cães ensinarem intensidade no breve

  Há mais de dez anos eu já o ouvia. Quando pisei aqui ele era adulto e eu também, embora eu ainda não me sentisse e acho que ele tampouco. Foi o primeiro vizinho a me cumprimentar, o primeiro a demonstrar que me percebia.
  Ele latia a esmo enquanto eu reclamava da subida íngreme do meu novo endereço; ele avançava nos desconhecidos enquanto eu suspeitava deles; ele carregava o pote de comida vazio, depositava aos pés de quem estivesse na cadeira da varanda e não demorava ter a sua fome aplacada, eu ia ao supermercado.

  Ele dormiu uma tarde inteira na varanda da casa, com a barriga para o sol, enquanto eu o observava, da minha mesa debaixo da janela, fazendo o trabalho atrasado que eu trazia aos finais de semana. Quando ele estava eufórico, corria ao redor da casa inteira, subia no telhado e uivava à sua ascendência selvagem, enquanto eu dançava em frente ao espelho, subia em ilusões brilhantes das quais eu sempre me estatelava ao chão.

  Sem planejar, eu pautei a minha rotina na do cão. Ficava preguiçosa aos sábados, depois do almoço; aos domingos, eu revezava entre comer e dormir; nos dias de semana, eu saía para passear na avenida todas as manhãs. Ficávamos felizes com as nossas companhias nos mimando e melancólicos, quando percebíamos que o que tínhamos era bom e, ainda sim, queríamos outra coisa. Éramos perdidos quando queriam que guardássemos a casa e confiávamos, com muita ternura, que qualquer um entrasse pelo portão; perdidos também, quando rosnávamos para as visitas, tentando proteger os nossos. Nós nunca soubemos distinguir os inimigos.
  Em determinado tempo, sua tristeza se estendeu muito para além da minha, ele se calou e o ritual da escalada ao telhado desapareceu da minha janela. Fiquei preocupada com a sua saúde, com o tempo de vida que achei se esvair e, depois, pela primeira vez pensei no coração de um cão. O que será que cabe? Dói também? Guarda tristezas numa gaveta escondida ou tem a memória benevolente como dizem?

  O cão apático e eu ressentida de não poder imitar a sua alegria, o cão silencioso e eu sentida por não ser mais acordada por ele em um cochilo da tarde, ao qual eu me entregava por não ter nunca uma noite de sono completa.
  No cão, eu entendi que tristeza também era assunto de não-humanos. Depois, vi a alegria chegar de novo, anunciada por caminhão de mudanças, quando outro cão veio morar na casa ao lado da dele. Finalmente alguém que o ouvisse plenamente. Voltou a uivar no telhado e viveu a felicidade de ouvir resposta. O cão voltou a parecer jovem, embora adulto, a ter apetite, a latir muito mais forte e desenvolveu o hábito de espremer o focinho entre as grandes do portão da casa, enquanto o outro cão fazia o mesmo. Ambos só ouviam vozes, mas passaram a precisar de mais. Os cães se conhecem por cheiro; amam ou desconfiam no odor.
   No cão eu aprendi que ser compreendido devolve-nos à vida; que comida e sonecas sob o sol são boas, mas sair do silêncio e saber de uma outra voz, ainda que do outro lado do muro, dá sentido a essa vida a qual nos devolvemos.

  No dia em que os moradores da casa ao lado organizavam a sua mudança, eu suspeitei que o cão, de novo, se sentiria tão só de não poder mais dar voltas ao redor da casa e subir ao telhado para invocar antepassados. Mas até isso o cão me deu. 
  Não voltou logo a ser tão saltitante; agora, bem mais velho do que eu, o cão seguiu com resignação e boa memória. Passei acreditar que a experiência de ser ouvido deu a ele a lembrança de que já não passava a  sua existência silenciosa. Alguém o conhecia e isso bastava para ser ora alegre ora saudoso.

  O cão me ensinou solitude, a equilibrar melancolias e amar maduramente. O cão, que só era de si e o qual jamais tentei que fosse meu, agora é um silêncio longo de amor e saudade. Amar um bicho é fácil, mas aprender um bicho é desafio dos maiores.
  Queria atravessar a rua e abraçar o casal de velhos que o mimaram intensamente. Queria falar sobre as coisas que ele me ensinou e a dificuldade que terei em suportar não tê-lo mais.

  Agora, somos só eu e os dois velhos do outro lado da rua, lamentando a vida curta, para nós, de um cão vira-lata.
  Um cão morreu e não há no mundo alguém que me ensine a passar como ele. Tomara que eu tenha aprendido o suficiente.
  Amar e perder. Aprender e despedir. Ser intensa e também passar. É do cão esse amor que eu ainda não sei; é da ordem dos cães ensinar intensidade ainda que o tempo seja breve. Hoje o dia foi silencioso e cinza. Eu preciso aprender a saber do cão, mesmo sem o seu cheiro.






 

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