sábado, 23 de maio de 2020

Se eu demoro, não é por maldade

   É que seu for eu sei que não terei volta, não a mesma, não com as mesmas ilusões, com os mesmos mistérios. Assim, como se eu  não for, não terei a minha história. Por isso os dias de silêncio, a última pergunta do dia com a resposta somente no outro. Não é por maldade que eu nego a palavra; é por saber que uma vez dita, será ela a encaminhar o destino. Eu adio, eu demoro, eu postergo,  eu atraso, tentando não ser injusta, tentando não quebrar os cristais da decisão.

  Desculpa se eu segurei o anel por muito tempo e depois o devolvi sem futuro; não quero negá-lo num primeiro instante, mas não pude carregá-lo por muito tempo.          
  Desculpa pelos encontros marcados só depois do trabalho, mas eu tentava pensar nos intervalos sobre as propostas dos dias anteriores; eu não queria dizer sim, por gentileza ou não, por impaciência. Eu, antes, quero pesar cada negativa ou entrega. Se eu atraso, é por querer dizer o certo. Mesmo que o errado venha sempre junto, como um acessório, chaveiro, etiqueta áspera na camiseta.

  Desculpa se eu seguro o elevador por alguns minutos, esperando que alguém vire o corredor. Geralmente, ninguém vem e ficamos todos um pouco atrasados por alguém que nunca veio.
  Desculpa pela demora em abrir a porta, mas, antes, limpo os farelos de pão no tapete, escovo os dentes, ajeito o cabelo, lavo as mãos, enquanto penso para quem eu abro a minha vida ao virar a chave. Porque não tem volta; se acaba, somos outros e eu fecho a porta; se continua, eu vou abrir a porta todos os dias, mas a manutenção da fechadura é tarefa que não pode ser solo.

   Mas quando ela gritou, eu não vi cabelo, dentes, farelo, eu me levantei com meia fatia de pão nas mãos, de pijama, sem saber para quem eu abria a porta; só abri e saí. Do alto da escada eu a vi muito mais menina do que nos outros dias. Sem maquiagem, sem cabelo arrumado, sem sapatos de salto. Era uma menina, um metro e cinquenta, short jeans e desespero em litros, segurando a porta de entrada, pedindo ajuda a quem pudesse impedir um homem de levar a sua filha. Só eu apareci. Patética, perdida e de pijama. Não demorei. Eu cheguei antes até do grito terminar; eu fui o penúltimo acorde. Não houve silêncio nem tempo antes de qualquer palavra:
- Não vai levar a menina não. Se a mãe não autoriza, ninguém leva.
  Eu sentenciei, antes da defesa.
 Mas eu o ouvi, embora eu já tivesse anunciado o veredito.
- Sim, é o pai. Tem o direito sim. Mas não agora, não sem ela deixar você levar a menina. Devolva. Por favor, devolva. Antes que eu chame a polícia.
  Elas tão sozinhas no hall do prédio, eu tão sozinha no alto da escada.

  Mas os vizinhos, que escovaram os dentes depois dos gritos, limparam os farelos de pão da calça de moletom, que pentearam seus cabelos ou colocaram um boné, antes de destravarem suas fechaduras e que, por isso, se atrasaram. Tinham as vozes mais potentes do que a minha, os corpos mais fortes, a experiência em brigas e julgamentos mais previsíveis do que o meu.
  - Deixa a menina com a mãe porque se entrar polícia vai ser pior para você.
  Eu não comia mais o pão, agora ele estava espremido no corrimão. Eu estava de pijama e só agora começava a me envergonhar.
 Cercado pelos homens do meu prédio, ele entregou a menina para a mãe e saiu, abraçado por um deles, enquanto os outros abriam os portões, falavam da sensatez em devolver a filha para mãe, aquela louca, chantagista, aproveitadora e vitimista. Ele saiu carregado nos ombros dos valentes homens de dentes escovados como o herói sensato - que sempre são.

  Ficamos as três no hall do prédio, a  jovem mãe que pariu sem o pai, a menina no colo com nariz escorrendo e olhos assustados e eu, inacreditavelmente pontual, de pijama e porta aberta antes de saber para quem eu abri.
  Eu não disse nada, não desci para abraçá-la, para oferecer ajuda com a menina, para pegar um copo com água sequer. Ela também perdeu, além do grito, a segurança da casa, a certeza da sua filha só sua, como sempre tinha sido. Não disse nada, mas me olhou. Não falamos; mas éramos só nós.    
  Desculpa se não fui eu a chegar a tempo de me colocar na porta de entrada e poupar a força da qual precisará todos os dias.

  É que eu demorei a entender que nós estávamos sozinhas. Que ninguém no mundo poderá nos salvar da solidão e do abuso, se não nós por nós mesmas. Que a menina no colo, sua filha, jamais tenha que lutar pela dela, cercada de juízos e o peso da  acusação dos que nunca saberão da pelve que nos move para o trabalho e que magicamente se expande para dar à luz ao mundo, este que tenta, ainda, nos deixar nas sombras.
  Que as circunstâncias me ensinem o tempo de cada resolução. Adiar o que é possível, mas estar pronta sempre que a urgência tiver um grito de injustiça e medo.
  Desculpa, mas os atrasos não são indelicadezas, são o que de melhor eu tenho, quando a certeza pode ferir alguém, por isso o atraso da flecha.





2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas gerais, 24 maio 2020

Amanda Machado

Que texto, que sororidade mística. Texto lindo. triste e lindo.

Um abraço

Paulo

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, de um tempo que corre mesmo que num lugar só, o ano é 2020


Querido Paulo,
sua presença é sempre comemorada; o agradecimento escrito é que às vezes demora, mas na minha alma o agradecimento é instantâneo.
Que estranhos esses dias...que estranhos, Paulo.
Espero que com vocês tudo esteja bem.
Abraços,
Amanda