
diz o nome e mais nada; a aridez na sua fala é remota. A materialidade dos gestos é maciça. É um homem que não guarda ecos, não sabe metáforas. Não me lembro dele ser diferente, ao menos na última década, que é desde quando eu senti o seu deserto tão aparente pela primeira vez.
Já a mulher é mais oca, parece carregar mais espaços, ainda que também limitados, mas não se exibe em palavras sorridentes; é minimalista em quase tudo.
Reconheço mais sociabilidade nas crianças; o menino, que durante meses, diariamente, me fez a filosófica pergunta - quem é você? Achei divertido e desafiador ter uma resposta diferente a cada dia. E a menina que sorri muito, inclusive com os olhos, que é o que posso ver do seu rosto, agora, quase completamente coberto por uma máscara com estampa de girafas ou uma outra com ursos pandas. É essa a nova rotina da família, ainda mais silenciosa do que antes, o pai esperar pelas crianças, no hall, a cada quinze dias.
Elas descem sozinhas as escadas, amparando uma a outra na infância que já tem o que levar nas costas. O menino conta os degraus em inglês e a menina tenta imitá-lo. São duas existências sonoras, prolixas e calorosas. Descem alegres com as suas ancestralidades partilhadas, as mochilas coloridas e sem nenhum estranhamento sobre os desertos que as trouxeram ao mundo. Talvez saibam, um dia, que não é assim que tem que ser sempre e só suportem a travessia, esperando um oásis lá fora. Talvez não se incomodem nunca e reproduzam areia, solidão, sol e sede nas próximas famílias.
É a terceira vez que os desertos se distanciam, mas é a primeira que as regras são definidas, que há a intervenção de um conciliador e que o pai não sobe mais os degraus do prédio que um dia pareceu ser muito seu.
Não sei como o afastamento começou a ser construído, tampouco se se eles mesmos sabem quando foi. Não acho que aconteceu em um dia específico, com hora, cenário, num diálogo ou na completa ausência dele.
Talvez tenha sido gotejado. Uma torneira em que ninguém reparasse problema. Um vazamento muito sutil, mas que acumulado, transbordou líquido e desperdiçou a cura para a sede deles.
É uma batalha em que só se vê o fim quando o último soldado cai ou quando a bandeira branca é hasteada e é declarado um vencedor. Ninguém consegue prever e contabilizar as perdas nos embates em campo aberto, nas emboscadas, os feridos abandonados pelo caminho. Tudo só pode ser visto ao final; quando olha-se em torno e há só destruição e vazio.
Um fim muito pulverizado, entre instantes demasiado cotidianos. Sem portas batidas, sem mensagens descobertas ou flagrantes arquitetados. Talvez a aridez dele, descoberta por ela desde o início, mas sob promessa de uma mudança que nunca chegou, tenha custado uma dezena de gotas, talvez a condescendência dela com os incômodos pequenos, mas diários tenha se somado ao vazamento, assim como a decisão unilateral da segunda gestação, as visitas da mãe dele sem aviso e sem tempo determinado de fim, o excesso de participação da família dela no cotidiano da casa. Tudo são gotas que escapam da atenção, da intervenção e do controle. De repente, só sobra a sede. Os desertos ficam completos e suficientes em si.
As crianças encontram com o pai no hall do edifício e seguem para a calçada, enquanto o deserto mais pleno solicita um transporte particular pelo aplicativo. As crianças se sentam na mureta em frente ao prédio e o pai continua de pé, ajeitando as mochilas que ele resolve carregar.
A menina é mais inquieta e ameaça a atravessar a rua por duas vezes; na segunda, o irmão aponta para o jardim e tenta distraí-la com as flores. Os arbustos de rosas vermelhas e amarelas estão carregados de flores bem abertas. Ela coloca o corpo contra a grade, que separa o jardim da mureta, estica o braço direito para tentar alcançar a flor vermelha, que não é a mais próxima, mas a mais bonita e quando se aproximava do encontro e talvez do rapto, o pai a repreende, pega-a no colo e já entram no carro solicitado. A menina não teve seu encontro com a rosa.
Mas a rosa sofreu o abalo, ficou torta. Pendurada por um galho dobrado pelo desejo da menina de ter uma beleza. Desço, sem contar degraus e sem bagagem colorida, até o resgate da rosa. Termino o roubo e coloco a flor em uma jarra com água, em cima da mesa da cozinha. Talvez dure até o retorno da menina e eu possa presenteá-la com a vida que ela amou, antes de ter seu encontro interrompido.
As rosas, lá embaixo, não resistem a mais dois dias; estavam exuberantes, mas já para partirem. A minha se despetala lentamente e já não é quase nada no terceiro dia. Elas também se afastam da vida um pouco a cada hora, mas se ninguém assiste a esses minutos é menos doloroso.
Eu vi a minha rosa, que queria que fosse da menina, definhar; deixar de ser plena e ser morte. Eu lamentei por não poder lutar por ela. A menina chega amanhã e eu só terei um galho amarelo, para ela, que já é tão cercada de deserto.
2 comentários:
Minas abandonada, 16 de 678 dias de maio de 2020
Querida Amanda,
Amanda, esta sua capacidade de posicionar-se no lugar do outro para compreender a sua realidade interna, é o que ainda nos resta para transformar esta província numa grande pátria.
Esta empatia genuína que flui pela sua arte e que está gratuitamente ao serviço da comunhão emocional, da aceitação e do respeito pelo outro e pela sua realidade, numa atitude de não julgamento e de despojamento de preconceitos do próprio faz de você uma escritora/poetisa/contista um ser diferenciado.
Um abraço!
Paulo Abreu
Juiz de Fora, 17 de maio, de 2020
Querido Paulo,
tudo anda muito estranho e difícil, mas há os amigos, os afetos, as admirações recíprocas que mesmo distantes, abrandam as dores e nos fazem acreditar em pequenas e profundas revoluções, abrindo caminhos para dias melhores.
Obrigada pelas palavras generosas e presença sempre iluminada.
Abraços,
Postar um comentário