quinta-feira, 21 de maio de 2020

Ir embora é inevitável, despedir-se é escolha

   Eu fui sem saber, eu não disse adeus, não manifestei adeus, eu quase não senti que era adeus, eu fui. Sem saber eu estava indo antes da despedida. Achei que pudesse ser a distância, os dias frios, as incertezas políticas, a insatisfação com o trabalho, os hormônios, a falta de chocolate, de liberdade, de alguma estabilidade, de suco verde, de cerveja ou de músicas novas. Achei que pudesse ser o excesso de más notícias, de horas perdidas nas redes sociais, de insônias, de revoltas ou de precariedades acumuladas - poeira debaixo do tapete.
 
  Culpei o clima, as três gerações anteriores à minha e a minha também, culpei globalização, neoliberalismo, terraplanistas, negacionistas, antivacinas, antidemocracias. Fiz chá para acolher o peito que parecia sempre resfriado por vento gelado e contínuo, arrumei armários para ocupar o vazio do dia e das mãos, escolhi viagens, que farei no futuro, para preencher a agenda do ano que ainda não chegou. Recorri ao Almodóvar, Sofia Coppola, Allen, Isabel Coixet para assistir às outras vidas, querendo encontrar nelas respostas para as nossas. Ninguém tinha.

  Tentei alguns dos textos do Freud, Bauman, Maria Rita Kehl, Marilena Chauí até ao Heidegger eu tentei recorrer; reli os poemas marcados no livro do Drummond, da Sophia  Andresen, da Ilka Machado, mas me fixei mesmo nos quadrinhos do Clavin e Haroldo. Nem o Google tinha respostas para os meus sintomas. 
  Procurei respostas em fontes erradas porque achava que perder as partes de si era doença de cura exata e com vacina testada. Achei que estar um pouco menor a cada dia acontecia para todo mundo de um jeito só. Não é doença, não existe um jeito só de sentir-se partida; um pouco mais a cada hora.  
  Primeiro, perdi o apetite do jantar a dois, depois, fui desgostando do lado da cama, querendo mais sol e menos cobertores; depois, adotei algumas mudas de plantas, passei muitos dias replantando-as em vasos maiores e regava-as à medida que a àgua não era mais suficiente. Das outras vidas, na casa, fui me esquecendo. Tanta dedicação transbordava da varanda que caía no andar debaixo, não sustentava mais o restante da casa. 

   Éramos eu, a varanda e as plantas; cuidado, espaço e projeção. Todos os dias era despedida e eu não sabia. Ora achava que era pétala ora reboco, no piso; não sabia que era eu. Achava que era frio, etapa, fase, isolamento. Achava que era falta de vitamina D, zinco ou da broa da minha avó. Achava que era falta de filhos, religião, talentos manuais. Achava que era excesso de sonhos, de pães de queijo, de recitais na playlist.
  Fui abandonando os excessos e preenchendo as ausências - só a broa não era mais possível. As ausências não cessaram. Achei que era pelo outono, tempo de perdas; deitei no sofá e só ia me levantar na primavera, mas as plantas e a varanda me chamavam para a vida. Eu ia embora um pouco a cada dia e não chamei de despedida.

  Dói ir e ficar também doeria. Levar os livros ou reorganizá-los nas estantes. Preencher os espaços vazios e encontrar novos que acolham as páginas e palavras, com o cheiro da antiga vida que irá junto. Limpar a casa depois da mudança, que depenou um pouco mais o abandonado, ou limpar a nova morada para encher de presença, o que há minutos era só futuro.
  Custa afastar as plantas da varanda de partida, sem saber se encontrão luz noutro lugar, e também é difícil adaptá-la a solidão.
  Dói perder partes amadas fora de si, mas dói ficar sem as próprias. Eu ia embora sem saber, a cada vaso que crescia, a cada parte da varanda preenchida. Tudo ali crescia, mas não nós; não eu.

   Quando eu virei a esquina com mala pesada não era eu que estava lá, senão só uma alma destroçada de não poder mais ficar e não ser a liberdade acusada. Ir embora para não me perder, ir embora perdendo o outro que não a mim. As duas perdas são dolorosas, mas só uma é definitiva; sem boas lembranças para preencher os espaços vazios da estante.
  Eu fui indo embora um dia de cada vez; os pratos, os copos, as roupas de cama, os sonhos partilhados, a vontade de não ser só, ter netos, querer apresentá-lo às minhas sobrinhas; cada desistência em uma caixa de papelão.

  Quando empilhei as caixas e liguei para a transportadora, eu já estava do outro lado da cidade, com partes de mim nos vasos das plantas, sedentas de água e luz. Eu não fui embora quando me despedi; eu fui embora quando a primeira parte de mim se desprendeu, caiu no chão e você fingiu não ver.
  Não tem carta, não tem última conversa que faça doer menos. Ir embora era inevitável - nem eu sabia que já tinha ido - mas a despedida, aquela que ritualiza a beleza do que foi e do que fomos é a única escolha possível, agora.



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