Não era dia
de amor. Era domingo de manhã, rua quase vazia, passos largos em caminho
acostumado - sete vezes na semana - era meio do ano, nem feriado tinha no dia
seguinte. Era o domingo que podia ser; um intervalo entre segundas. Eram os pés
em linha reta e um olhar oblíquo, mas não o sensual de Capitu. Era olhar
desconcentrado, porque espera sem saber de onde e o que virá, mas espera.
Não era dia de promessas nem de ficar ou de partir; não era dia de
decisão no futebol da TV nem na minha vida. Era espera desolada, era sol
consolando o caminho e mais nada. Não era fuga, coreografia nem maratona, mas
era desejo dos três; cada um ao seu tempo. Começaria numa coreografia, passaria
à maratona e por fim, fuga. Mas era domingo de comércio fechado, colação
tardia, pratos na pia e falta de fôlego.
Não era dia de não ser só; domingo é uma solidão de longas extensões, da
cozinha à sala de estar. Não era dia de sonhar com o novo, o domingo é dia de
nostalgia e sono; o olhar para frente é outro dia. Era só um domingo de não ser
amada.
Não era dia de ser vista. Era domingo de atravessar a cidade com alguns poucos
olhares das varandas, mas de não ser vista por alma nenhuma. Domingo sem
trânsito nem notícias, sem planos nem missões, domingo sem medo e sem batom. Era
dia de não esperar pelo sinal vermelho do semáforo, de não pedir desculpas pelo
atraso, de não começar um livro novo. Dia de cochilos e vazios; dia de não
desejar, de não arder de esperança.
Era dia de ser invisível na rua vazia, de sair e chegar em casa sem um gesto,
palavra ou olhar que legitimasse a minha existência no domingo. Dia de não
saber nada, de não compartilhar nada, de não responder a ninguém; de não
suspeitar se é ou não o certo, de não duvidar da intuição. Era só um dia de não
ser ninguém para ninguém.
Não era dia de metáfora, de romances nem flores. Domingo sem
comemorações, mas também sem tristezas muito profundas. Tapete sem confetes nem
balões, sem fronha molhada de tristeza incontida.
Um domingo de levar o lixo, de fazer um alongamento sem muita vontade, de
não ouvir música nova e ir para avenida quase vazia, de todos os domingos. O
primeiro domingo sem Olga Savary, sem meninas Sublunares, sem oceanos de
empatia, sem a única palavra que se queria ouvir.
Não era dia de reconciliações nem de ódios, tampouco de infelicidades partilhadas. Um domingo de café com calma, nem amargo nem açúcar demais. Um domingo sem apetites.
Um domingo com roupas no varal, copos no escorredor da pia, domingo silencioso, o que não significa paz. Domingo de luto, quando todas as palavras foram perdidas. Será que foi o que eu achei que fosse? Melhor não pensar em respostas, no domingo elas não cabem.
Não era dia de reconciliações nem de ódios, tampouco de infelicidades partilhadas. Um domingo de café com calma, nem amargo nem açúcar demais. Um domingo sem apetites.
Um domingo com roupas no varal, copos no escorredor da pia, domingo silencioso, o que não significa paz. Domingo de luto, quando todas as palavras foram perdidas. Será que foi o que eu achei que fosse? Melhor não pensar em respostas, no domingo elas não cabem.
Não era dia de ser valente, tampouco ficar instalada na vulnerabilidade.
Domingo de ir. Só seguir.
Domingo de não ter chamadas ao interfone, de não ter a quem cumprimentar na rua, de não ouvir carros de som, de não passar pelo caminhão de abacaxis. Domingo de não estar encolhida, mas também não seguir disposta.
Domingo de não ter chamadas ao interfone, de não ter a quem cumprimentar na rua, de não ouvir carros de som, de não passar pelo caminhão de abacaxis. Domingo de não estar encolhida, mas também não seguir disposta.
Cinco quilômetros, ainda, os cabelos um pouco embalados pelo vento
e, de repente, a aparição da esperança. Um metro e oitenta, juventude nos
olhos, sorriso aberto desde muito longe, um livro nas mãos e camisa de manga
longa sob um pulôver bege e marinho. Como é bonito a esperança.
Um domingo sem guerras, sem trincheiras, sem acordos de paz. E a
esperança alto, bonito, sorriso muito aberto e não era verde, era negro; não
pousava na minha janela, mas dividia a rua comigo.
De repente, a esperança não quis ser mudo. Em cinco segundos converteu o
domingo em outro dia, diferente desse ao qual eu não queria pertencer:
- Só
vitória, querida! Só vitória!
Era o domingo do encontro inusitado, de não ser mais só, invisível, silenciosa
e não amada. Era o dia de querer outra coisa, sem ainda saber o quê. Esse homem
me viu e me sustentou pela tarde e noite.
Às vezes custa tanto a recebermos a palavra que esperamos, criamos o nosso
próprio repertório, escrevemos em caderno, publicamos em livro e ela só sai.
Geramos para o mundo, esperando que alguém nos devolva algum dia.
Na
voz, no tom, no sorriso mais generoso do tempo, ele disse e eu sigo buscando o
bote, a corda, o suspiro redentor - só vitória, querida. É essa a esperança que
me consola; o da palavra do desconhecido.
Esse é um tipo de amor que também é fé. O que nos tira da invisibilidade, da mudez, da apatia do domingo e nos presenteia com o único regalo que mais ninguém soube oferecer. Só vitória, ele disse, e era o que eu precisava ouvir. Cinco segundos de amor, no domingo.
Esse é um tipo de amor que também é fé. O que nos tira da invisibilidade, da mudez, da apatia do domingo e nos presenteia com o único regalo que mais ninguém soube oferecer. Só vitória, ele disse, e era o que eu precisava ouvir. Cinco segundos de amor, no domingo.
2 comentários:
Minas Gerais, 203 dias deste maio interminável de 2020
Amanda,
Li seu texto viajando na terceira margem, como explicitou Guimarães Rosa. Estava ali alienado, o texto me provocou a real alienação, a inércia que estou nesta quarentena. Até que há o grito da vitória, o alarme do mundo dos vivos. Achei sensacional a sua crescente manifestação sensorial. Abaixo, um poema do Caetano Veloso, antigo, posteriormente musicado pelo Milton Nascimento, baseado na Terceira Margem, de onde você hoje nos resgata.
Lembrei deste poema do caetano, por causa do verso final. Sua crônica é uma viagem de volta:
Hora da palavra / Quando não se diz nada / Fora da palavra / Quando mais dentro aflora
Um abraço!!!!!!
Oco de pau que diz:
Eu sou madeira, beira
Boa, dá vau, triztriz
Risca certeira
Meio a meio o rio ri
Silencioso, sério
Nosso pai não diz, diz:
Risca terceira
Água da palavra
Água calada, pura
Água da palavra
Água de rosa dura
Proa da palavra
Duro silêncio, nosso pai
Margem da palavra
Entre as escuras duas
Margens da palavra
Clareira, luz madura
Rosa da palavra
Puro silêncio, nosso pai
Meio a meio o rio ri
Por entre as árvores da vida
O rio riu, ri
Por sob a risca da canoa
O rio viu, vi
O que ninguém jamais olvida
Ouvi, ouvi, ouvi
A voz das águas
Asa da palavra
Asa parada agora
Casa da palavra
Onde o silêncio mora
Brasa da palavra
A hora clara, nosso pai
Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando mais dentro aflora
Tora da palavra
Rio, pau enorme, nosso pai
Juiz de Fora, 21 de maio de 2020
Caro Paulo - feliz presença e generoso em partilhas
Tudo o que trouxe hoje é tão bonito, que nem parece daqui, deste tempo. O que me consola é que temos o melhor da arte, da nossa cultura, das nossas humanidades; que não passarão. Ainda que o esforço seja o de que esqueçamos de tudo aquilo e aqueles que nos orgulham e dão nome a quem somos; o que temos é muito maior e mais longevo.
Guimarães, Milton, Caetano, Paulo..há tantos valores, tanta humanidade...por isso sobrevivemos.
Abraços, Paulo. Cuide-se bem. Obrigada pelos presentes.
Amanda
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