domingo, 17 de maio de 2020

Só vitória, ele disse

   Não era dia de amor. Era domingo de manhã, rua quase vazia, passos largos em caminho acostumado - sete vezes na semana - era meio do ano, nem feriado tinha no dia seguinte. Era o domingo que podia ser; um intervalo entre segundas. Eram os pés em linha reta e um olhar oblíquo, mas não o sensual de Capitu. Era olhar desconcentrado,  porque espera sem saber de onde e o que virá, mas espera.
    Não era dia de promessas nem de ficar ou de partir; não era dia de decisão no futebol da TV nem na minha vida. Era espera desolada, era sol consolando o caminho e mais nada. Não era fuga, coreografia nem maratona, mas era desejo dos três; cada um ao seu tempo. Começaria numa coreografia, passaria à maratona e por fim, fuga. Mas era domingo de comércio fechado, colação tardia, pratos na pia e falta de fôlego.

  Não era dia de não ser só; domingo é uma solidão de longas extensões, da cozinha à sala de estar. Não era dia de sonhar com o novo, o domingo é dia de nostalgia e sono; o olhar para frente é outro dia. Era só um domingo de não ser amada.
   Não era dia de ser vista. Era domingo de atravessar a cidade com alguns poucos olhares das varandas, mas de não ser vista por alma nenhuma. Domingo sem trânsito nem notícias, sem planos nem missões, domingo sem medo e sem batom. Era dia de não esperar pelo sinal vermelho do semáforo, de não pedir desculpas pelo atraso, de não começar um livro novo. Dia de cochilos e vazios; dia de não desejar, de não arder de esperança.                                                                                                                

  Era dia de ser invisível na rua vazia, de sair e chegar em casa sem um gesto, palavra ou olhar que legitimasse a minha existência no domingo. Dia de não saber nada, de não compartilhar nada, de não responder a ninguém; de não suspeitar se é ou não o certo, de não duvidar da intuição. Era só um dia de não ser ninguém para ninguém.

     Não era dia de metáfora, de romances nem flores. Domingo sem comemorações, mas também sem tristezas muito profundas. Tapete sem confetes nem balões, sem fronha molhada de tristeza incontida.
    Um domingo de levar o lixo, de fazer um alongamento sem muita vontade, de não ouvir música nova e ir para avenida quase vazia, de todos os domingos. O primeiro domingo sem Olga Savary, sem meninas Sublunares, sem oceanos de empatia, sem a única palavra que se queria ouvir.                                                                                 
  Não era dia de reconciliações nem de ódios, tampouco de infelicidades partilhadas. Um domingo de café com calma, nem amargo nem açúcar demais. Um domingo sem apetites.
   

  Um domingo com roupas no varal, copos no escorredor da pia, domingo silencioso, o que não significa paz. Domingo de luto, quando todas as palavras foram perdidas. Será que foi o que eu achei que fosse? Melhor não pensar em respostas, no domingo elas não cabem.
   Não era dia de ser valente, tampouco ficar instalada na vulnerabilidade. Domingo de ir. Só seguir.     
   Domingo de não ter chamadas ao interfone, de não ter a quem cumprimentar na rua, de não ouvir carros de som, de não passar pelo caminhão de abacaxis. Domingo de não estar encolhida, mas também não seguir disposta.                                                                                                                                          
   Cinco quilômetros, ainda, os  cabelos um pouco embalados pelo vento e, de repente, a aparição da esperança. Um metro e oitenta, juventude nos olhos, sorriso aberto desde muito longe, um livro nas mãos e camisa de manga longa sob um pulôver bege e marinho. Como é bonito a esperança.  
   Um domingo sem guerras, sem trincheiras, sem acordos de paz. E a esperança alto, bonito, sorriso muito aberto e não era verde, era negro; não pousava na minha janela, mas dividia a rua comigo.
   De repente, a esperança não quis ser mudo. Em cinco segundos converteu o domingo em outro dia, diferente desse ao qual eu não queria pertencer:
- Só vitória, querida! Só vitória!

   Era o domingo do encontro inusitado, de não ser mais só, invisível, silenciosa e não amada. Era o dia de querer outra coisa, sem ainda saber o quê. Esse homem me viu e me sustentou pela tarde e noite.                           
   Às vezes custa tanto a recebermos a palavra que esperamos, criamos o nosso próprio repertório, escrevemos em caderno, publicamos em livro e ela só sai. Geramos para o mundo, esperando que alguém nos devolva algum dia.
  Na voz, no tom, no sorriso mais generoso do tempo, ele disse e eu sigo buscando o bote, a corda, o suspiro redentor - só vitória, querida. É essa a esperança que me consola; o da palavra do desconhecido.    
    Esse é um tipo de amor que também é fé. O que nos tira da invisibilidade, da mudez, da apatia do domingo e nos presenteia com o único regalo que mais ninguém soube oferecer. Só vitória, ele disse, e era o que eu precisava ouvir. Cinco segundos de amor, no domingo.



2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 203 dias deste maio interminável de 2020

Amanda,

Li seu texto viajando na terceira margem, como explicitou Guimarães Rosa. Estava ali alienado, o texto me provocou a real alienação, a inércia que estou nesta quarentena. Até que há o grito da vitória, o alarme do mundo dos vivos. Achei sensacional a sua crescente manifestação sensorial. Abaixo, um poema do Caetano Veloso, antigo, posteriormente musicado pelo Milton Nascimento, baseado na Terceira Margem, de onde você hoje nos resgata.

Lembrei deste poema do caetano, por causa do verso final. Sua crônica é uma viagem de volta:

Hora da palavra / Quando não se diz nada / Fora da palavra / Quando mais dentro aflora

Um abraço!!!!!!
Oco de pau que diz:
Eu sou madeira, beira
Boa, dá vau, triztriz
Risca certeira
Meio a meio o rio ri
Silencioso, sério
Nosso pai não diz, diz:
Risca terceira

Água da palavra
Água calada, pura
Água da palavra
Água de rosa dura
Proa da palavra
Duro silêncio, nosso pai

Margem da palavra
Entre as escuras duas
Margens da palavra
Clareira, luz madura
Rosa da palavra
Puro silêncio, nosso pai

Meio a meio o rio ri
Por entre as árvores da vida
O rio riu, ri
Por sob a risca da canoa
O rio viu, vi
O que ninguém jamais olvida
Ouvi, ouvi, ouvi
A voz das águas

Asa da palavra
Asa parada agora
Casa da palavra
Onde o silêncio mora
Brasa da palavra
A hora clara, nosso pai

Hora da palavra
Quando não se diz nada
Fora da palavra
Quando mais dentro aflora
Tora da palavra
Rio, pau enorme, nosso pai

Amanda Machado disse...

Juiz de Fora, 21 de maio de 2020

Caro Paulo - feliz presença e generoso em partilhas

Tudo o que trouxe hoje é tão bonito, que nem parece daqui, deste tempo. O que me consola é que temos o melhor da arte, da nossa cultura, das nossas humanidades; que não passarão. Ainda que o esforço seja o de que esqueçamos de tudo aquilo e aqueles que nos orgulham e dão nome a quem somos; o que temos é muito maior e mais longevo.

Guimarães, Milton, Caetano, Paulo..há tantos valores, tanta humanidade...por isso sobrevivemos.

Abraços, Paulo. Cuide-se bem. Obrigada pelos presentes.

Amanda