
Preferia que tivéssemos a possibilidade do inesperado; da fila do supermercado, da praça de alimentação do shopping, das galerias do centro, da porta de uma lotérica ou farmácia. Gostaria de ser flagrada ou de surpreendê-la, de mãos dadas com alguém que ainda não gostaríamos de apresentar. Queria um segredo entre nós; bastava um sorriso de cumplicidade e não contaríamos a ninguém do par das mãos dadas.
Podíamos nos esbarrar na saída de um bar, restaurante, na entrada, atrasadas, para o cinema ou, na saída, com o rosto vermelho e inchado pelo choro durante um filme. Mas nada disso foi para nós. Desconhecemos acaso e as lágrimas uma da outra. Como pode a proximidade que temos nunca ter revelado lágrimas?
Eu não sei porquê ela chora, como chora e o que sente depois de chorar. Eu nunca ofereci-lhe um copo de água com açúcar, uma cadeira macia e o meu ombro para ela derramar todo o líquido que carregasse dentro. Ela não sabe que eu choro por ela; eu não sei se temos narizes vermelhos e inchados, iguais, ao chorar, embora desconfie que sim.
Eu não sei se ela também chora de alegria ou se os ansiolíticos a fazem permanecer no limiar dos próprios sentimentos.
Eu desconheço aquilo que poderia nos aproximar mais e ela também me desconhece assim; nunca oferecemos nossos choros uma a outra. Talvez por isso, nos pertencemos menos.
Sempre vou muito preparada ao seu encontro, ao longo da semana faço coletâneas de introduções a assuntos prosaicos; porque sei que é também minha a responsabilidade pela manutenção dos nossos diálogos. No começo, era para dar-lhe tempo e segurança até que recuperasse a fala; nunca aconteceu, então elaboro frases que não sejam muito complicadas para ela responder. Ela responde, balançando a cabeça, escrevendo com o dedo no meu braço ou solicita um papel e uma caneta, quando as respostas são mais longas. Levo caneta e papel, pilhas para o rádio, algumas fotos, pinto as unhas, porque ela sempre confere as minhas mãos; conto sessenta minutos no relógio, depois de entrar pelo portão, e somos, de novo, o encontro possível da semana e da vida.
Às vezes queria conhecê-la, para além do que temos até hoje, fazer perguntas menos superficiais, saber como se sente, quais são os seus sonhos, suas revoltas, como se sente em estar em um lugar de tantas regras e quase nenhuma privacidade.
Às vezes queria oferecer uma ajuda, uma fuga, um sinal de que eu gostaria de devolver a ela alguma liberdade, um caminho mais arejado e afetuoso do que este. Mas tenho medo de instalá-la em um estado de reflexão e raiva que talvez eu não pudesse ordenar novamente. Por covardia, eu pergunto se gosta do esmalte que eu estou usando.
Eu não sei se eu poderia assumir o risco de um vulcão, de uma onda gigante, de um terremoto ou, o mais difícil, de uma chuva fininha e melancólica que ficasse no hall, enquanto eu terminava os meus sessenta minutos no portão. Por isso não a chamo, não sei se eu posso levá-la a qualquer lugar. Por isso não a conheço, porque tenho medo de que conhecendo-a não consiga nunca mais dormir em sono profundo.
Ela é um rosto que eu vi envelhecer, cabelos pretos escovados na altura dos ombros magros que, agora, são curtos e muito grisalhos, ela é guardadora de lembranças que eu não tenho, mas tão íntima de um silêncio estranho, é um perfume que eu sentia quando muito pequena, bochechas coradas de blush antigo, a figura que eu sonhava em parecer e, agora, encontro semanal repleto de rituais e rotinas. É a minha pergunta mais latente, é o silêncio mais rodeado de dúvidas; é a minha ligação com a covardia que não avança para despertá-la.
Agora que eu não tenho ido, fico em casa pensando se ela tem chorado, se ela sente a minha ausência ou se já aceita-a como as outras perdas que não reclamou para ninguém. Ela não é só apatia, soube que é furiosa também, mas nesses encontros programados eu nunca enxerguei olhos de fogo, espumas no canto da boca, veias saltadas na testa ou qualquer coisa que acenasse vida.
Não é tão difícil estar em casa e saber que a obrigatoriedade do isolamento acaba em breve, ainda que não saiba o quanto de tempo isso significa; não é difícil estar limitada aos cômodos da casa diariamente, à portaria eventualmente, a ida ao supermercado uma vez na semana.
Difícil é aceitar a estadia no breve, ele custar a passar e, talvez, nunca chegar. Preferia a revolta, mas eu não sei, ainda, o que ela prefere. Anoto a pergunta e talvez faça-a no nosso primeiro encontro semanal, depois dessa distância.
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