segunda-feira, 11 de maio de 2020

O que ninguém conta da viagem é que ela nunca é só o que contam

   A viagem é definitiva, nunca existe, de fato, volta. O retorno carrega sempre bagagem excedente; não é volta é outra viagem.
   O que falam sobre a viagem é quase sempre muito menos do que ela realmente foi, falam dos monumentos, do flanar pelas cidades de idiomas diferentes, dos pequenos almoços lisboetas, das empanadas de cebola e queijo do Sanjuanino, das taças de vinho em Santiago.   
  Não falam dos asfaltos acidentados, dos assaltos, das abordagens grosseiras porque não falamos a mesma língua, das poluições, das intoxicações alimentares, da pimenta e do sal em falta ou excesso, não falam das dores de cabeça, das sedes e das vergonhas, muito tardias, nas ressacas.
  Trazem fotos que não têm latas de lixo transbordando, sapatos sujos, crianças nos semáforos, copos quebrados, óculos perdidos e canteiros com flores secas.

  O que falam sobre a viagem é quase sempre uma propaganda muito particular, mas que soa tão convincente quanto à da agência de viagens. Compramos as passagens com a expectativa de turismo semelhante ao visto, ouvido e, muito mais, ao imaginado; ignorantes do que ninguém contou.
  O que falam do tempo que passamos noutro espaço é quase sempre uma lembrança muito suavizada pela segurança do retorno, esquecem dos equívocos, das más experiências, do caos da bagagem e dos incidentes nos hotéis.

   Falam dos gastos mínimos e não contam que o mínimo é sempre muito pouco para quem espera muito. Investimos mais até do que realmente temos porque a viagem sonhada passa ser a espera por uma felicidade mais do que prometida, é merecimento; é a justiça pelos vazios, tédios e mornidão dos dias comuns. Viajamos para encontrar o que achamos que pode ser nosso e que nunca nos foi dado antes; achamos que precisamos buscar a qualquer custo. Mesmo que continuemos, por muito tempo depois da viagem, endividados, cansados, um pouco arrependidos por não termos sido mais contidos.

  O que não falam sobre as viagens é que nunca voltamos a ser, um dia, quem partiu. Conhecer outro lugar é também melancólico quando descobrimos que não é nosso, que não nos pertencem as palavras do lugar, as músicas, os sabores, os gestos, os itinerários, os cheiros. Estrangeiros, esforçamos para reconhecer e sermos reconhecidos. Pedimos a comida local, a bebida local, afastamos o que já conhecemos para viver a experiência com a entrega que planejamos; mas nada é nosso. Tudo é passagem e paisagem que surpreende, emociona, cola imediatamente nas lembranças que iremos gostar de contar a alguém um dia ou, ao menos, suspirar com uma xícara de chá nas mãos numa varanda vinte anos depois.

   O que falam sobre as viagens são impressões, tantas vezes, meramente de turistas. Sobre as experiências superficiais de carimbos nos passaportes, de dias que não vamos ao trabalho, não nos calamos nas injustiças para não perdermos o emprego, não nos perturbamos pelos aluguéis em atraso, pelos vizinhos barulhentos, pelas roupas que ficam na máquina porque, de cansaço, dormimos antes de estendê-las no tempo certo. Não falam das pendências que ainda nos esperarão na volta, dos traumas que não se curam nas viagens, das coisas que não aprendemos só por aterrissarmos em outros solos.
  O que não nos contam sobre as viagens é que às vezes dormir noutra cama nos faz sonhar diferente, que aos vermos as ruas vazias em dias de chuva, da janela do hotel, nos faz querer ter outra vida, dentro da vida que nos espera de onde partimos. Ninguém conta que, às vezes, brigamos com a vida que tentamos esquecer nesse espaço-tempo e desabrigadas da nossa identidade já conhecida, tentamos inventar outra, mesmo que de passagem.

  O que nos contam sobre as viagens é que é fácil subir na astronave e seguir rumo à lua. Toda a poesia, a ciência, as descobertas, a comprovação in loco, a possibilidade de uma perspectiva que tão poucos outros já tiveram.
  O que ninguém conta é que ao ir à lua, ninguém volta a mesma. Depois de experimentar a gravidade zero, o voo mítico, a vista de uma Terra tão vulnerável, nunca voltamos; ir à lua é uma decisão definitiva, nada transitória. É para sempre trazer a lua para o cotidiano que tínhamos antes de ir até ela. Jamais abandona-se o aprendizado, o lirismo e a coragem que encontramos na lua.

  Ir à lua é uma decisão definitiva, mas ninguém conta. Na volta, a fama passageira, alguns programas de entrevistas na TV, palestras em escolas, propagandas de travesseiros e até, ministérios em governos fascistas, decisões ordinárias e equivocadas, até. Mas a lua, uma que ninguém conhece, ainda mora, a lua que nunca se apagará.
  Em ir à lua há riscos maiores do que só a morte e ninguém conta; como se morrer fosse o único motivo para alguém desistir. Mas não ir à lua é nunca flutuar, deixar de conhecer reentrâncias de um solo só visto em imagens e simulações, não ter a experiência de saber-se privilegiada e impotente ao olhar um planeta azul tão pequeno, mas único lugar que é verdadeiramente um pouco seu. 



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