
da água fervida. Era o cheiro de manjericão do canteiro, debaixo da janela e o da mexerica, que exalava sob o sol no quintal.
Era apaziguamento, finalmente, no calor da cozinha, no abraço macio depois de abrir o portão e bater palmas na janela da sala.
Era o sentar-se à mesa da cozinha grande, tomar café com leite e o pedaço de bolo e mais outro e outro. Ouvir a conversa de mulheres adultas; o assunto quase nunca interessava, mas o tom das vozes, os gestos, ora domésticos ora indomesticáveis; esses capturavam. Depois iria imitá-los na sua própria cozinha.
Bolo após bolo, iria ser a adulta dona dos gestos, vozes e assuntos. Bolo após bolo, não precisaria mais imitar, já seriam os seus.
Todo sábado era bolo e café com leite; só o bolo ela repetia. A outra era diferente da mãe, era calmaria, tinha uma água tranquila nos olhos, nunca perderia a paciência com ela, nunca gritaria ou a pegaria pelo braço, quando demorasse a escutar. Era uma mãe que podia ser dela; mas queria ainda manter a própria, por isso não tinha jeito. Era uma mãe-imaginação.
E assava o bolo e colhia couve; fervia a água e o leite ao mesmo tempo. Era calma e trabalho; só o abaixar e se levantar sacudia as águas dos olhos marejados. Era uma postura tão altiva, tão elegante; ainda que às vezes a encontrassem de lenço - e bobs - no cabelo e sem as unhas feitas ainda.
Nada parecia grave demais; não tinha nunca drama na voz. Falava pausadamente e uma só frase para cada reposta. Parecia ser sempre solução. A mãe chegava inquieta - mil palavras a cada gole de café e ela serenava um não ou sim, nos intervalos entre cada pedaço de bolo da menina que a sonhava como mãe - ao menos em dia de prova escolar.
Também cultivava algumas flores no jardim e samambaias penduradas na varanda; mas a atenção era maior para as verduras, os condimentos, os legumes e frutas. Era de sustentar mais pelo essencial do que só beleza.
E fazia o mesmo bolo todos os sábados, era esse o bolo do café de sábado. Sem cobertura, sem recheio, sem granulado. Mas era o bolo.
Era o melhor dia da semana; era meditação, ioga, reiki - tudo em um pedaço de bolo quente, cortado pelas mãos quase sempre queimadas ou arranhadas dela - as mulheres adultas, desse lugar, tinham sempre essas mãos.
Pedia para mãe fazer bolo igual, durante a semana, mas nem com a receita era possível. Porque era dela, era ela, na cozinha que guardava os segredos das suas águas constantes e doces.
Depois de gestos e vozes imitadas o assunto passou, também, a ser interessante. Mas era quase tudo ainda desconhecimento; nomes de pessoas que já não existiam, sobrenomes difíceis de decorar, situações que não faziam sentido ainda. Casamentos, filhos, destinos alheios e os próprios. Arrependimentos, derrotas, pequenas felicidades, escolhas difíceis, sonhos irrealizados e abraços surpreendentemente quentes.
Na mesma tarde falaram de tristezas; a mãe chorava antes de dar nome. Ela não, a palavra não abalou a água profunda dos seus olhos.
- É porque é como uma escolha. Se eu deixo ela entrar e fazer daqui a casa dela, ela fica mesmo. Agora, se entra, eu faço um bolo e peço licença. Não fica. Volta, mas não mora. O meu jeito é fazer o bolo simples. Para não ficar na tristeza eu faço bolo.
Quem era essa a quem ela também servia bolo, mas não deixava ficar? Desentendida de metáforas por muito tempo, não sabia do tamanho da tristeza da mulher que tanto admirava.
Tem gente que dança, procura terapia, desabafa com uma amiga ao telefone, toma chá, dá golpes em saco de areia, goles em bebida ardente, se encolhe um pouco em algum canto da casa, esperando passar. Tem gente que se alia a ela, se dá, não consegue se defender.
Ela, a mulher de água nos olhos, calma nas mãos feridas, paciência na escuta e profetiza nas palavras em frases curtas, fazia o bolo simples. O bolo que era devorado todos os sábados.
Comiam a tristeza dela sem saber. Pedaço por pedaço, um atrás do outro. Farinha de trigo, lágrimas, leite, açúcar, desilusões, ovos, margarina, nó na garganta desfeito e fermento. Na massa do bolo simples, ela colocava a sua dor e levava ao forno. Servia-os salpicados com uma camada de açúcar fino, como uma neblina, um choro que não faz barulho no telhado, mas molha.
Em quantos bolos sua tristeza se dissipou? Em quantos sábados tristes dela, a lembrança feliz de alguém se construiu? Por que não falava? Por que permanecia inquebrável a dona? E feliz, ela fazia iguaria mais doce?
Depois de tanto tempo, ainda se lembra da calma, da voz sensata de uma mulher gigante ajoelhada no canteiro de tubérculos, forçando os dedos feridos a se aprofundarem na terra. Ela sabia desenterrar raízes e assar tristezas, que ficavam muito doces quando servidas.
Amparada pela lembrança, não aprendeu a plantar, tampouco a colher certeira qualquer vegetal, mas a receita do bolo simples completa é a herança dos sábados vividos. Três xícaras de farinha de trigo, um quarto de xícara de angústia, três ovos, quatro colheres de margarina, duas colheres de covardia, uma xícara e meia de leite, três quartos de xícara de um peito ferido e uma colher bem cheia de fermento. Meia hora no forno médio e servir com açúcar e uma xícara de café fresco. Um bolo simples de uma mulher brilhante.
6 comentários:
quero bolo, papo e calor quando essa fase passar!
Também, Bebel...eu também!
Texto com cheiro, lembranças e muito afeto da casa da vó... onde o bolo era sempre igual, o café era fraco, o leite gordo e as conversas eram infindáveis.... Beijo, irmã!
Amada, que saudades de você! Beijos infinitos...
Minas Gerais, 19 Junho 2020
Amanda,
Texto lindo, destes para guardar no coração e na alma. É um mergulho no interior da gente.
Emocionei muito.
Um grande abraço!
Minas tristes, 19 de junho de 2020
Querido Paulo,
o mundo anda tão complicado e você ainda me visita com suas cartas tão generosas. Obrigada por vir.
Que bom que se emocionou; é este o legado que podemos oferecer, nossas emoções.
Abraços,
Amanda
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