terça-feira, 30 de junho de 2020

Pelo mar que nunca foi nosso é que as nossas angústias se encontram

    E em todas as vezes que você acha que precisa me ouvir eu sugiro que você fale e se ouça. Porque você tem perguntas infinitas, as quais você deixa que ocupem o seu travesseiro, enquanto a cabeça fica torta. Mas também tem respostas para muitas; mesmo que tenha medo delas.
  Depois, eu acho que você deve tentar se levantar; se não conseguiu dormir esta noite, tente outra. Porque só de permanecer deitada o sono não vem. E deitada, tenho a sensação de que  o mundo pesa ainda mais. Especialmente quando não se tem sono e, por isso também, escapam os sonhos.

  Só se levante e repita as rotinas de uma pessoa que acabou de acordar; imite alguém, que seja a você mesma, quando ainda costumava  dormir um sono completo e era acordada pelo despertador. Coloque as duas pernas para fora do colchão, faça os pés encontrarem o chão, busque o par de chinelos, debaixo da cama com um deles. Se esforce para fazer isso ainda sentada; imite a preguiça, o desejo de ainda dormir.

    Depois, siga até ao banheiro, encontre o gato no corredor e passe a mãos na cabeça dele; só isso já é a garantia de alguém acreditar no seu sono e recente acordar. Lave o rosto, escove os dentes, faça xixi, enquanto estica o tapete do banheiro, que puxou quando se sentava. Enrosque duas voltas de papel na mão e se seque, olhando para uns finos raios de sol que atravessam o basculante. Lave as mãos e dê uma olhada no espelho, assim sem procurar nada, só olhe e tente pensar no que vai comer agora pela manhã. Tem ovos, tem pó de café, cinco fatias de pão de forma, tem meio sanduíche de ontem, mas que não vai querer. Não precisa limpar nada agora. Faça dois ovos mexidos e esquente duas fatias de pão na mesma frigideira onde fez os ovos. Tente não se dar trabalho para mais tarde. O café passado na cafeteira italiana, porque acabou o filtro de papel; uma xícara cheia com duas colheres de açúcar. O gato virá de novo, você precisa alimentá-lo e tentar passar as mãos mais vezes na cabeça dele, sabe que o gato também sente quando você se ausenta.

  Eu sei que é um péssimo lugar esse seu agora, estive nele há pouco. Você acha que não sabe,  acha que precisa ouvir de alguém o que tem que fazer, acha que se der qualquer passo tudo vai desmoronar atrás e que não vai saber viver em ruínas. Mas sabe. Eu soube. Quase todo mundo viveu em ruínas algum dia. Vai desmoronar se der o passo e se não der também. Mas se der o quanto antes, se o passo vem de um ímpeto de coragem, vai ao menos carregar algum orgulho. Meu pai chamava isso de dignidade; eu chamo de coragem, tem gente que chama amor-próprio. Eu gosto da palavra coragem. Mesmo que se vire e lamente as ruínas atrás de si, a coragem ajuda a erguer os ombros e a chorar sem se encolher demais.
  Você acha que qualquer passo definirá a sua história, que o seu futuro sonhado está nesse passo, em cada um deles, desde que se levanta até quando sobe o elevador do prédio de escritórios. Mas quer saber? Não está não. Não nesses medidos, nesses limitados por expectativas; porque a gente é sempre atropelada, já reparou? Por mais cuidados que tomemos ao atravessar as ruas. Uma carreta, um ônibus, uma bicicleta que seja, nos pega em cheio. Então tome o seu café e divida um pouco o seu afeto, que agora não parece muito -  ainda que seja - , com o gato.

  Sugiro que afrouxe. Que ceda; ao tudo e ao nada. Que tome banho se quiser, que só troque de roupa se achar que é melhor. Que não passe a camisa que escolheu ontem para trabalhar, mas que escolha algo que não amasse tanto. Qualquer camiseta, porque hoje não faz frio aí. Que coma o que queira, que durma o quanto queira, se o sono voltar. Que xingue, se exalte, que diga que ama ao primeiro que passar por você na ida ao trabalho. Que beba muito hoje, segunda-feira, amanhã vá trabalhar de ressaca e que a semana seja pesada pelo álcool e não pela sensação de responsabilidade que carrega agora. Só afrouxe, não se cobre, não tente se justificar, não lamente cada e-mail esquecido ou prazo vencido. No seu lugar, os erros não são letais. Vão entendê-la e se não, paciência. Ouça algumas repreensões, mas não se cobre mais por isso. Dê-se um tempo. Ouça o que já sabe e que acha que não.

  Mais tarde, no intervalo para o café, não fique com o cenho franzido de pensar de novo e tanto. Não perca o olhar num calendário, no relógio de parede nem na porta vermelha de emergência do prédio.  Olhe pela janela da copa, a avenida que você atravessa, perto do mar, a qual já se acostumou e não oferece mais espanto. Pense que tudo o que me manda vem por ele e tudo o que eu ofereço chega a você por ele. Estamos integradas pelo mar ao qual você se acostumou, sem conhecer.
  E que,  por hoje, não pense no amor que já não tem, mas no que pode ter ou buscar em quem queira dá-lo a você. Abandone abraços partidos e enumere os desejados. Não se lamente mais pelos beijos mornos abandonados, busque os quentes que você entende que merece. Isso amanhã, quem sabe?

  As suas coisas chegaram aqui, eu as  recebi como se fossem minhas, porque são um pouco. Porque a conheço, porque escrevo e falo com você quando acordo com torcicolo por dar muito espaço às perguntas no meu travesseiro. Falo com você e estranhamente me escuto e me surpreendo, às vezes, pelo que sabia antes de querer que você me dissesse. E quando as suas coisas chegam, eu de novo sei o quanto é um caminho tão universal esse nosso, mesmo em distâncias continentais.
  Quando as suas coisas chegam, sem aviso algum do correio, eu desço para recebê-las, assim no palpite, na sutileza de uma intuição. Então, recebo-as, desembrulho na rua mesmo e contemplo a exatidão das nossas questões que sempre se misturam. Qual é a cópia, qual é a legítima?
  E, quase sempre, para sua pergunta eu também não tenho a resposta, ainda que seja parecida com a minha e que eu talvez já a tenha respondido. Ultimamente nós temos nos encontrado pelo mar; logo eu. E é o mar, agora, que a obriga a ouvir a si, porque eu chego sim por ele, mas a voz precisa ser sua.


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