quinta-feira, 2 de julho de 2020

Cento e seis luas e nenhuma eu vi da rua

   E agora as variações da moldura têm sido, ao todo, seis - a da janela de cada um dos três quartos, a do basculante de um dos banheiros e a da sala. A preferida é também a menor. A do basculante. A lua do banheiro é íntima, a lua que reflete no registro do chuveiro é a mais interior.   O banho da noite é com ela. Por ela, a água nunca é fria, o sono não é demasiado, o dia não é cativeiro suficiente.
 Cento e seis luas que eu não vejo da rua, que eu não corro o risco de tentar abrir a porta errada, de conversar com o gato que arranca as rosas do jardim, no escuro, de falar alto, derrubar as chaves e acordar o bebê do apartamento ao lado.

  Há cento e seis noites só o barulho da água caindo na pia, depois o da xícara que eu guardo no armário e o da minha insônia com dedos nas teclas,  cada dia mais apagadas. Agora o L é somente um acento agudo; já desisti de preencher as linhas partidas com o esmalte claro, os meus dedos sabem para onde ir.
   Há cento e seis camas reviradas e eu ainda acho que, na próxima noite, o sono será de doze horas. Expectativa alimentada pelo dia afora.

  Cento e seis silêncios com os quais eu ainda me surpreendo. Com o oco da noite, com o eco da madrugada na rua. Se alguém levanta a voz, logo desiste, porque fala sozinho. Não há resposta. Estão todos emitindo e ouvindo os próprios barulhos em casa. Da porta para fora é que é só silêncio. A mudez pública prevalece.
  A noite parece maior quando não há o que ouvir. O isolamento afugenta sons; nos aproxima daquilo de que muito evitamos ouvir em nós. Eu mesma voltei a reconhecer a minha voz; nem sempre agradável, mas impossível de ser ignorada.

  Cento e seis dias e ele atravessa a cidade em uma moto, entrega meu copo de café com a embalagem molhada e eu não reclamo. Quis ser dessas pessoas que tomam café em copo descartável e não sou. Coloco a água para ferver e amanhã ele me entrega uma pizza.
  Cento e seis vezes ele me chamou ao interfone com o café derramado, livros,  pizzas, xampus, água tônica,  um par de sapatos, livros, um pijama de inverno com a calça que ficou curta e a manga da blusa um pouco abaixo dos cotovelos, livros, uma torta de iogurte, bolo de aniversário, livros, flores, flores, cartão do banco, cesta de pães, um envelope pardo com contratos (ando sempre cedendo algo a alguém, mesmo que nunca tenha nada), livros, capas de almofadas, um conjunto de lençol percal 180 fios, chinelo, tapete de banheiro, livros, ansiolítico, antigripal e inseticida.
  Cento e seis olhares com este homem que a cada dia é um, mas que parece tão próximo quanto a lua do meu banheiro. Será que em cento e seis vocativos, ao menos um é para seu afeto?

   Há cento e seis cafés que eu revezo entre uma xícara em pé mesmo, encostada na pia da cozinha e duas na mesa da sala, uma com leite em pó. Cento e seis cafés que eu não peço a conta e vou ao banheiro. Há cento e seis cotidianos que eu não ouço histórias no ônibus a caminho do trabalho, que eu não me atraso para sair ou que eu cochilo no banco alto, voltando do trabalho. Há cento e seis brigas de crianças que eu não intervenho, que eu não deixo de escrever bilhetes porque acredito nas juras de nunca mais, com dedos cruzados que eu vejo, mas finjo não.
  Há cento e seis paixões que eu não me impressionam entre a chave de casa e o vento da rua. Em cento e seis reflexos no espelho, a tentativa de me identificar com alguma. Nunca estive tão presa e tão liberta. Trabalho de chinelos com meia, mas não sei quando começa ou acaba o trabalho.

  Há cento e seis crises que eu tento apaziguar com sensatez, conselho antigo ou escuta amiga. Há cento e seis intuições, que eu suspeito que só não foram vitoriosas na quina e na mega, porque eu nunca soube tanto de mim. Nunca me doei e me consumi tanto. Nunca me cobrei e perdoei na mesma proporção.
  Cento e seis mortes e nascimentos diários depois e eu ainda tenho sete vidas para serem testadas. Nem o gato amarelo ousaria tanto. Cento e seis felinos frequentam a minha escrivaninha, mas não deixam um só bilhete de agradecimento. Cento e seis pares de olhos brilhantes que pareciam me julgar, hoje me compreendem profundamente.

  Há cento e seis dias a lua é ainda mais brilhante, mais desejada e íntima. Cento e seis luas e eu espero alcançar de um outro jeito a rua que agora não aceita donos.
  O basculante do meu banheiro é a minha liberdade poética mais profunda. A intimidade do banho com a lua me encharca de desejo e futuro.
  Cento e seis luas vistas pela janela, me dão a esperança de que da próxima vez em que eu sair à rua, serei eu mesma e outra, acompanhada de uma centena de sonhos que por pouco eu não deixei que escapassem pelo ralo, em um banho mais antigo.



4 comentários:

John disse...

Uma excelente reflexão sobre estes dias pandêmicos, a começar pelo título!😊

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 106 de Julho de 2020

Prezada Contista Amanda
Fina Flor das supimpitudes do Lácio.

Se me fosse perguntado - defina Amanda Machado, diria - a moça da metalinguagem neolatina.

Você transcende nossa percepção deste caos com seus olhos, é uma coisa linda.

Um abraço!!

Amanda Machado disse...

Gracias pela generosa leitura, John! Às vezes me saio melhor nos títulos...rs

Amanda Machado disse...

Minas cansadas, julho de 2020

Caro Paulo,
que bom que você ainda está aí! Espero que em segurança e com saúde no corpo e emoções (esta última desafiada há bem mais tempo).

Mesmo no caos a lua brilha, não é? E é preciso contemplá-la para existirmos ( e resistirmos) em algum lugar.

Vamos em frente, caro monarca da Pitangueira! Obrigada pela visita sempre tão elegante e festiva.

Abraços,
Amanda Machado