domingo, 5 de julho de 2020

Porque ainda não temos saída

 
- Por que é tão difícil para você confiar?
  - E a voz da análise quer mesmo uma resposta?
  Primeiro, porque ainda não é luz; não é breu completo, como antes, mas definitivamente ainda não é luz. Não andamos por caminhos em que podemos ver o chão, não vemos os rostos como eles são, não têm placas para nós, nem segurança, nem garantia de chegada. Somos estrangeiras em qualquer lugar, dentro de casa confundem o nosso idioma; um não é quase sempre convertido em sim.

  As cortinas, as portas, os cadeados vão contra nós. As esquinas, as escadas, os corredores não estão para nós. As câmeras nos constrangem, as câmaras nos silenciam, os seguranças não revistam só as nossas bolsas, eles invadem a nossa intimidade em público. Perguntam, mas duvidam. Pedem respostas, mas as que damos nunca são as que eles querem ouvir. O sinal está sempre aberto e é um perigo querermos avançar. Nenhuma grande rua ou avenida é nossa. São todas deles; com os nomes e as memórias deles, a cidade não nos pertence, nem a casa, tantas vezes.

  Depois, é difícil descobrir que as palavras não são garantias, que as promessas não precisam carregar só verdades e que ler olhares na escuridão é um desafio imenso para nós, que nascemos com um terceiro olho, que logo aprendemos a ignorar; porque eles juram que não existe. Que já não temos a clareza da visão para atravessarmos sozinhas os caminhos do medo. E também, muito cedo, nos tiram das raízes e só somos visíveis quando temos flores; antes e depois delas não somos nada.
  E que dez minutos ou vinte anos não estão tão distantes assim; o tempo não nos salva também.
  E que as condicionais quase nunca nos favorecem: se não tivesse acreditado, se não tivesse esperado, se tivesse saído antes e se não tivesse achado que a outra mulher é tão distante de nós. Se ela ainda pudesse chamar e esperar pela nossa chegada.

  Porque ele disse que ia protegê-la, fez uma casa com paredes, telhado, quintal e uma horta. Plantava couve e fazia café para as visitas. Mas o olho roxo dela foi também ele quem deu, os vidros de esmalte ele jogou fora para ela não trabalhar, o cabelo pintado de loiro não era para ela.
  Mesmo que planeje as férias em Barcelona, que escolha nomes de filhos que você terá com ele. Mesmo.
  Com vinte e três, doze, trinta e dois, minha tia tinha trinta e nove; a idade que eu tenho agora. Não há proteção. O teto é a ameaça. A filha dela também tem trinta e nove e se não temos o olho roxo, também não significa que estamos salvas.

  E estão sempre a dizer por onde devemos ir, enquanto andamos no escuro. Para o nosso bem, para um bom percurso, para a nossa segurança. Não confiamos, mas todas pagamos um preço muito alto se decidimos desviar. Mas se ficamos, também pagamos. 
  Não deixam que tentemos alcançar as placas, encontrar desvios, seguir rotas próprias; a estrada é deles, a luz também. Esgueiramos pelas beiradas, encostas, vielas e corremos outros riscos, se buscamos autoria de trajetória.  Para nós, fazem sapatos mais apertados e menos resistentes; para que não partamos para muito longe.
  Há os algozes que se fantasiam de aliados, trazem chás, palavras de consolo, mas as chaves ficam penduradas na cintura e eles também desconhecem o não. As grades são nossas, a liberdade é deles.

  Chamam-nos de sagrada, se damos a luz que não temos para nós. Mas não basta a primeira luz, para a sacralidade, o sacrifício tem que existir. Querem ver os seios, alimentam-se dos seios, mandam cobrir os seios. E nunca é o bastante. Sempre falta. Sempre o erro, a culpa, a incompletude e a vulnerabilidade que eles apontam.
  Ela batia à porta e era a imagem mais bonita, depois das três voltas de chave e a minha mão alcançando a maçaneta: cabelo curto, pintado de loiro, unhas vermelho encarnado, lábios com gloss, lápis preto na linha d'àgua do olho castanho claro, sorriso largo, dentes pequenos e olhos tristes-alegres - nunca vi olhos iguais aos dela. Não chorava, mesmo quando contava alguma coisa muito dolorida. Minha mãe dizia que com o tempo secamos as lágrimas; mas ela só tinha trinta e nove. Não podia já ter secado.
  A próxima visita fomos nós que fizemos, café numa xícara azul. Ela sorrindo com grampos dourados no cabelo e o olho roxo, sem lápis dessa vez.

  Tinha trinta e nove e deu à luz cinco vezes. Tinha o cabelo loiro errado, a cegueira congênita de mulher, o terceiro olho ignorado. Teve aquele homem que prometeu segurança e construiu uma casa com quintal, que plantava couve e também criava galinhas. Se não tivesse aceitado a proteção, se tivesse saído da casa minutos antes, se não tivesse demorado no banho. Nada a favor. É sempre arriscado. Era o não que não poderia ter sido.
   Nunca mais vi olhos iguais. Temos trinta e nove e ainda é inseguro, incerto e as condicionais nunca estão ao nosso lado.
  Os que fazem café, plantam couves, criam galinhas, dividem a cama por quase duas décadas, escolhem nomes para cinco filhos e sorriem para as visitas também não são confiáveis nunca ou por um dia. E se este único dia bastar, aí não temos saída.

  - Qual foi mesmo a pergunta?






2 comentários:

Paulo Abreu disse...

Minas Gerais, 06 julho 2020

Prezada Amanda,

Véspera do aniversário da minha filha, amanhã ela faz 24 anos. O Universo permitiu que eu só fosse pai de filhas. Gosto disto. E li seu texto como um pai que deseja que as filha sejam felizes nas suas vidas.

Deparar com barbáries, violência física, psicológica e espiritual (sim, existem e alimentam as duas anteriores) e saber que isto é uma atitude humana, de pessoas que agem naturalmente dentro das suas psicopatias, usurpando do direito de ser humano, me me deixa triste.

Seres humanos que escravizam mulheres, cometem pedofilia, aterrorizam corações e mentes encontram guarida numa sociedade que sempre foi (e não é de hoje, não é pela modernidade) misógina, não se sustenta pela verdade - somos todos imagens e semelhança. Nenhum mal fica impune, mais cedo ou mais tarde o Universo manda a fatura.

Acredito que o medo de não ser o que acredita que deveria ser, em função das crenças que se passam de geração para geração, promove esta ação disruptiva contra a beleza da mulher em toda a sua existência.

Parabéns!!! Lindo seu texto!

Amanda Machado disse...

Minas Gerais, 06 de julho de 2020

Caro Paulo,
esse é um texto que eu não queria escrever. Sentei-me aqui e tinha em mente outras coisas,talvez mais bonitas, apaziguadoras e esperançosas. Mas não apareceram, não vieram, me deixaram só.

Custa escrever isso, porque também às vezes custa muito a sentir, testemunhar, ler...É inescapável - todos os dias dezenas de notícias que nos assombram, nos colocam em frente a uma realidade perturbadora, no mínimo.

Há os caminhos tortos de individualidades que forjam o poder pela manipulação, opressão, submissões infinitas, enfim, as violências todas as quais você também citou. E também a nossa trágica história social do patriarcado. São muitas grades a serem superadas...

Que a sua filha, Paulo, tenha a coragem e a esperança para resistir e ser muito, muito feliz. Ela já tem uma paternidade afetuosa, que em todas as outras relações a amorosidade se mantenha. Parabéns para ela. Dê um grande beijo pelo dia e pela vida.

Obrigada pela leitura e conversa sempre tão prazerosa, mesmo quando o assunto não é.
Abraço,
ótima semana
Amanda