segunda-feira, 13 de julho de 2020

Ninguém pergunta sobre o Glauber

   Já  parece ser daqui. É mais visto do que muitos dos moradores mais antigos da rua; que agora, em
sua maioria, se limitam ao portão das suas casas, com meios rostos cobertos e olhos melancólicos. Recebendo passivamente as compras do supermercado, as novas instruções da empresa que recolhe o lixo e os cumprimentos abafados e distantes dos vizinhos que saem para o trabalho.
  Senhoras até há pouco muito ativas, agora são rostos finos, paralisados e listrados pelas grades das janelas baixas e os homens velhos já não vão ao parque central, porque está cercado por tapumes de alumínio e fiscais da prefeitura. São novos dias temporários que se prolongam demasiado, modificando paisagens e, talvez, perspectivas.

  Qualquer consciência de limitação, a qualquer hora, é desoladora. Querer ir e não poder ou ainda não querer ir, mas saber não poder ir, mesmo que venha a querer. O desejo às vezes vem da própria limitação. No entanto,  há uma etapa da vida, eu acho, em que as limitações se acumulam e a presença de mais uma, só acinzenta os dias.
  A única segurança é a casa, mas não gostam de estar nela por tanto tempo. Pensar em quanto ainda podem, mas não devem. Pensar em quanto tempo falta e se poderão ainda alcançá-lo quando ele chegar. Se as pernas desaprenderão a subir no transporte público, se as mesas com os tabuleiros de xadrez ainda podem esperar mais.
 
  Todos os dias vem ele, o portador das coisas de fora. A ponte possível na aridez das horas. Ele não possibilita a passagem, mas ele entrega o que há do outro lado que possa ser carregado. Nunca sua presença foi tão marcante aqui. Todos o reconhecem agora, chamam pelo seu nome, fazem chamadas para o celular dele, trocam palavras de gentileza e colocam nas mãos dele a esperança da alegria em amenidades ou urgências.
  São muitas voltas na cidade até chegar a essa rua; várias vezes ao dia. Terão sido muitas voltas até eu revê-lo de novo. Da última vez, estudávamos no mesmo instituto da Universidade, fizemos uma disciplina juntos; ele pesquisava Glauber Rocha e eu gostava de ouvi-lo. Agora somos outros e não contamos à rua sobre as nossas outras vidas. Afinal, é possível que todos tenhamos vidas anteriores ou paralelas desconhecidas. Os moradores dessa rua são esses passados improváveis e misteriosos; a velhice muitas vezes reprime o interior, que surpreenderia a quem só enxerga tempos sobrepostos.

    Agora ele tem o rosto mais fino, os cabelos grisalhos e uma calma que eu não conheci antes. Vejo-o mais de capacete e reconhecia-o, nas primeiras semanas, mais pela moto, mas agora tem trejeitos aos quais eu me acostumei.
  Como quando ele flexiona o joelho para descer da moto, o minuto em que ele une as duas pernas e se estica, antes de dar o primeiro passo, o braço que ele deixa solto, relaxado ao voltar para moto, depois da entrega de alguma encomenda.

  No início, as entregas eram protocolares, batia a campainha, anunciava a chegada, esperava o portão abrir e deixava a encomenda nas mãos de quem viesse ao seu encontro. Agora já parecem visitas rápidas, estabeleceu com cada morador um código de afeto. Pergunta pelas dores, animais domésticos, mudas de plantas, gramados cortados, frio, aquecedor, mate quente para o rio-grandense, aspirinas para o senhor da casa verde. Quem o recebe também se importa; perguntam-no pelo trânsito, pela perna, pelo cansaço. Ninguém pergunta sobre o Glauber.

  Todos os dias em que ele atravessa a cidade e sobe a minha rua, eu me lembro das cenas dos filmes e dele pausando-as para comentá-las, eram quase sempre impressões muito apaixonadas; eu não sabia se eu gostava mais do Glauber ou dele, por causa do Glauber. Mas ainda hoje eu o relaciono com isto, com o ficou do que ele é ainda, para mim.
  Eu o vejo na moto, ele vê os velhos nas casas e também não sabe o quão interessantes eles são. Eu também quase não sei, embora seja a vizinha de tanto tempo.
  Mas ele já é mais do que o rapaz da moto e das entregas; ele é quem rompe com o isolamento quase completo, ao qual muitos moradores estão entregues; é dele a gentileza das perguntas.

  Hoje à tarde, ele levou uma encomenda para mim, eu tive vontade de dizer que o conhecia de outro tempo e do Glauber e de o quanto ele modifica a paisagem da rua e a dinâmica dos meus vizinhos. Mas não tive tempo, foi ele quem atravessou a ponte mais uma vez e fez a pergunta. Se era eu quem escrevia os livros que há semanas ele entrega. Eu disse que sim e ele quis saber sobre o que era. A pergunta talvez seja um lugar dele.
  Nessa tarde, ele levou um exemplar e a minha vida para além das entregas; eu ainda guardo a pergunta sobre o Glauber. Ninguém o perguntou antes. Mas eu a guardo para a próxima entrega.
  Um homem todos os dias atravessa a cidade, carregando alegrias e subsistências de desconhecidos; para quem entrega ele não conhece, mas tenta. Quem recebe não sabe muito dele, mas ao menos já dizem o seu nome e desejam sinceramente que ele regresse bem. Às vezes é preciso permitir que alguém visite a nossa ilha ou que visitemos ilhas ignotas; assim, com a gentileza da pergunta.






4 comentários:

Bel disse...

eu adorei a encomenda que o pesquisador do Glauber ou ou amigo dele trouxe pra mim.

Amanda Machado disse...

Eu também adorei as que recebi!

Paulo Abreu disse...

Sem formalidades, graças ao Glauber Rocha;

Amanda, há um trecho desta crônica que me encantou a ponto de pensar em emoldurar. Lindificou o texto!!
"Agora somos outros e não contamos à rua sobre as nossas outras vidas. Afinal, é possível que todos tenhamos vidas anteriores ou paralelas desconhecidas. Os moradores dessa rua são esses passados improváveis e misteriosos; a velhice muitas vezes reprime o interior, que surpreenderia a quem só enxerga tempos sobrepostos."

Parabéns sempre!!!!

Amanda Machado disse...

Sem formalidades...
Obrigada, Paulo! São sempre auspiciosas e comemoradas suas visitas aqui. É muito bom recebê-lo para o café.
Ótima semana!!