quarta-feira, 8 de julho de 2020

Perdemos as xícaras, as ruas e o que veremos. Mas ainda teremos o visto.

Lily James Inspiration behind the female lead Teddy in Dear Diary coming 2018  Se eu pudesse colocar as duas mãos no buraco da sua ausência, talvez eu não sentisse que recomeçar não é não doer. Porque ainda há o buraco, a ausência e as duas mãos impassíveis, amparadas nas ancas, sem nada que possam fazer.
  Não é material a perda, embora tantas vezes pareça materializada nas xícaras que compramos na loja de departamentos do shopping, em um dia que fomos felizes por nada. Fomos felizes porque tínhamos futuro e isso bastava naquele dia. Já não seríamos no dia seguinte, mas naquele dia fomos. Fomos muito. Mas não sendo material, as mãos são absolutamente despreparadas para deterem um tempo, alcançarem a medida de uma partida, acolherem um abandono. As minhas mãos não podem, as suas também não poderão.

  Se eu pudesse pintar aquele dia em tela, em porcelana, em qualquer souvenir para lembrar, muitos anos depois, do dia em que comprar xícaras era motivo único de uma felicidade que só tem a memória para eternizá-la; eu gastaria tintas e as aulas de pintura que eu tive na quinta série. Mas seriam cenas improváveis, impossíveis de beleza para quem não esteve ali naquele dia. Se soubéssemos que era o último, talvez demorássemos mais a escolher as xícaras, a entrar no carro, a comer a pizza, a nos despedirmos.
  Mas, ao contrário, nos apressamos para viver tudo com mais intensidade no dia seguinte e nunca aconteceu.

  Nem mãos no vazio, nem pintura. Tivemos apenas uma foto borrada, perfis contra luz e, agora, perdida entre  outras imagens mais permanentes e menos significativas. Nunca sabemos mesmo a duração de cada coisa antes que ela acabe. A dor, mesmo, essa que ainda lateja, parece não ter fim, mas sabemos que terá e, depois, vai parecer que não foi longo assim. Que nos curamos muito rápido, que tudo aconteceu sem sofrimento.
  E foi sobre isso que nunca falamos, o fim das coisas e a eternidade desse fim. Porque é ele agora, não é? Só o fim se prolonga. Em pouco tempo teremos mais tempo de fim do que de compras e pizzas. Não falamos porque não acreditamos, não parecia certo; até sobre as nossas mortes falávamos, porque o fim da vida era inevitável; por que nós não seríamos fim?

  Se tivéssemos falado sobre essa outra morte, sobre esse vazio, depois de tanta prosperidade em pouco tempo, estaríamos mais preparados ou só acharíamos absurdo pensar em futuro interrompido? No dia das xícaras era, até um pouco mais tarde era. Mas se quebrou. Por algum motivo, se quebrou sem conserto. E as xícaras, objetos escandalosamente sensíveis duram mais que o nosso futuro. Que estranho isso. Que mistério guardam as xícaras baratas de uma loja de departamentos, que duram depois de quedas na pia, de mãos desastradas, de rodopios no balcão da cozinha até pararem exatas?
  E se nos propuséssemos a pensar com seriedade na dor, quem sugeriria apagar as cenas primeiro? Quem seria a Clementine dessa história? Algum de nós prometeria não sucumbir a desmemória?

  Foi o dia da xícara, foi ali que eu descobri que a felicidade é instante, que a morte também é. Que as listas que fizemos eram mais frágeis que as xícaras, que só depois de passadas as cenas que sabemos distinguir o que foi felicidade genuína ou vontade dela. As xícaras foram genuínas, as listas foram vontades.
  Imagine voltar àquele dia. Imagine tê-lo inteiro de novo e toda a dor logo depois? Abriria mão do dia para não ter dor? Eu sempre disse que não, agora não sei, porque ainda é dor. Já quis me desfazer das xícaras para que não me lembrassem do buraco, mas eu perderia as xícaras e o buraco ainda assim não seria ocupado por outra coisa. É ele, o tempo dele. Não vai se fechar para que eu me esqueça. Ainda assim, eu recomeço.

  Se eu pudesse caminhar para espalhar mais rápido essa nuvem melancólica de certeza de morte e lamento pelo futuro que não teremos, eu calçava os meus tênis e atravessava a cidade lívida, talvez com algum choro, mas nada que me impedisse fôlego novo. Mas corrida nenhuma apressa o tempo ou afasta as nuvens que precisam sobrevoar nossas cabeças. Tudo é tempo. Reparou?
  Tempo de acontecer e de quebrar. Tempo de aceitar e de curar. Alguns duram mais que outros. As xícaras já ultrapassaram o tempo de garantia; já não dá mais para reclamar se descascar a estampa. A quebra não estava na garantia e, no entanto, parece que o risco as protegem; nenhuma quebrada até hoje. E você não tomou nenhum gole de café dessa xícara que eternizou você ou a felicidade de um dia com você.

  Não dói não dividir as ruas de madrugada com você porque mudamos nosso itinerário, tampouco tomar café na xícara e o dia da compra ser diluído inteiro, até ver as cenas paradas com o pó no fundo. Duro é perder olhares e ver sozinha, o que se partilhava ainda pouco. Porque ninguém mais entenderá essas xícaras  além de mim. Porque as cenas no shopping são prosaicas demais para serem pintadas. Porque naquele dia eu não sabia que uma felicidade tão rápida demoraria tanto em mim. Porque a felicidade parece chegar quando já não estamos, eu soube que esse dia era feliz há pouco, as xícaras me lembram disso.
  Que seja mortal posto que é de louça, mas que seja infinito enquanto fim.



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