terça-feira, 28 de julho de 2020

Sereia urbana da penteadeira sob o sol

  O pente é de plástico, verde-água, é bonito, embora pareça mercadoria ordinária numa primeira visão. É sempre o mesmo pente, todos os sábados, escorregando pelo mesmo cabelo, que nos últimos tempos ganhou comprimento.
 - Tenho que cortar, mas o salão não pode abrir.
  O que parecia utensílio privado, todos os sábados é exposto no museu do agora que ela estende na calçada. É um ritual dela que me pareceu familiar desde sempre. Não existiu estranhamento antes, talvez porque já fizesse parte do meu repertório de memórias. Lavar o cabelo aos sábados e secá-lo ao sol. Assim, bem assim, espremendo os olhos e deixando a cabeça inclinada para os raios de luz.  Também já participei desse ritual. Depois, eu  o secava sob o sol, mas o fazia no quintal da minha casa.
  Hoje o lavo todos os dias, mas os sábados ainda me parecem feitos para lavar o cabelo.

  O dela não. O ritual dela é público, é na calçada contrária ao da casa onde  mora. Em frente ao portão de um vizinho pouco conhecido e não muito simpático. Ela fica de pé, às vezes deixa uma caixa de grampos no muro, penteia o cabelo e com o pescoço inclinado,  cumprimenta quem passa. Pentear o cabelo sob o sol, na rua, entre vizinhos e desconhecidos, não se limitando ao quintal de casa; é ela. Ela e o pente verde que já fazem as minhas manhãs de sábado. Ela vai onde o sol está, se na casa dela não tem, vai para rua, para calçada, vai transpor o toucador para o portão de um desconhecido.
 
  Quando eu me mudei, ela já morava na rua. Conhecia todo mundo ou parecia conhecer; perguntou o meu nome uma dezena de vezes, mas ainda me chama de moça do prédio. Casa verde, marido e um cachorro. E como se pareciam os três! Pequenos e nervosos. Agitados e inofensivos.
  O marido, durante anos eu achei que era irmão, de tão parecidos. Narizes aduncos, afinalados, rostos rosados, mesma altura, cabelos cinza, óculos de grau forte, daqueles que deixam os olhos bem pequenos. Calças passadas com vinco e tênis.  Ele tinha cabelo ralo e era tranquilo, ela tem o cabelo farto e muita linguagem; fala com as mãos, os pés e a boca. Não para nunca. Antes falava com o marido e o cão. Agora, resta o cão como ouvinte; o marido morreu há pouco menos de um ano.
   Tiveram um filho e o enterraram ainda muito jovem, morto por um acidente de carro. Isso antes de se mudarem para casa verde. O marido era mineiro, ela é do sul; disse que voltaria para lá, depois da morte dele.
  - Mas veio essa pandemia e eu tenho que esperar. E ainda tem o Fofinho, muito velhinho e eu não sei se aguenta viajar!
  Ela e Fofinho em uma casa enorme, sem sol pela manhã; ela atravessa a rua e deixa o Fofinho, latindo no portão.
- Olha, você pode me ver, Fofinho. Eu não vou embora!
 Eu já me acostumei com ela todos os sábados, penteando os cabelos na calçada e o Fofinho, até hoje, teme o abandono.

   Uma semana depois da viuvez e ela lavou o cabelo e veio penteá-lo na rua. E é mais forte que a saudade, a perda, a solidão, a distância, a doença, a sensação de não pertencer a este lugar. Nada a desvia do ritual do cabelo. Nem viuvez nem frio, agora, nem o vírus. Talvez só chuva ou dia muito nublado.
 Como é admirável a constância dela, a segurança de ter a si, o próprio cabelo e o gesto mais antigo do que qualquer relação que ela tenha estabelecido. Ela desliza o pente verde-água nos fios brancos e grossos, um pouco abaixo dos ombros, inclina a cabeça e balança os fios, que se desgrudam um pouco uns dos outros. Logo as pontas ondulam e os fios mais novos, ficam mais leves e ouriçados; o que ela logo resolve com os grampos.

  Enquanto o Fofinho late até se cansar e deitar no portão com a cabeça entre as grades, enquanto alguém esvazia um apartamento e muda de país, planos ou estado civil. Enquanto alguém se desespera porque é sábado e não deve sair.  Enquanto o noticiário atualiza milhares de mortos, enquanto os salões não abrem e o cabelo dela só cresce.
  Enquanto a lembrança de um filho lateja, se um jovem estaciona um carro na rua ou a memória, morna ainda, do companheiro de caminhadas e palavras cruzadas ficam do outro lado da calçada. Ela atravessa a rua todos os sábados e insiste no seu ritual ao qual se mantém fidelíssima. Lavar os cabelos e deixar para penteá-los na calçada, sob o sol.

  Encantadora visão da sereia urbana da minha rua, que se atreve a trazer a penteadeira para o sol que ela não tem na sua janela, mas vem buscar. Todos os sábados ela está na calçada, com o pente verde, o cabelo grisalho, a potência na voz e a delicadeza de colocar os grampos nos fios mais rebeldes.
  O espelho dela sou eu e qualquer uma que passe pela rua aos sábados de manhã, todas somos ela; revigoradas após um banho, desembaraçando o fios, com a esperança de um pente ordinário, esquentando o corpo cansado no sol e buscando um pouco de paz no gesto mais remoto.
  Por que de repente, o doméstico ficou tão íntimo, tão privado e menos bonito? 
  Ela faz diferente, partilha os fios grisalhos e também os cabelos loiros compridos de prenda do Rio Grande do Sul, os sonhos de menina que se tornaram desilusões ou conquistas, as vidas as quais se entregou e as que se esvaíram antes da dela. Eu não quero não tê-la nas manhãs de sábado.

  Vou falar para que ela não se vá. Vou dizer que quando ela penteia os cabelos, me devolve o lugar que eu não tenho mais. Vou dizer que quando sinto o cheiro que ela deixa na rua é quando eu me sinto verdadeiramente em casa.
  Vou pedir que fique e me lembre que a última que perdemos somos nós; nunca a primeira. Vou pedir que me ensine a não desistir de atravessar a rua. Vou dizer que eu só acredito em sereias como ela, urbana, cheia de perdas e fiel ao gesto mais antigo consigo. Vou dizer que se os braços dela perderem a força, eu penteio os seus cabelos em retribuição à imagem mais bonita das minhas manhãs de sábado. Vou pedir que fique. 


6 comentários:

Bel disse...

(Ariel, é você?)

Ahhhhh dorei esse! Também sou sereia urbana de pente preto e seco cabelo à sombra em um apartamento.
:( saudades do mar

Amanda Machado disse...

Hahahaha
Sai fora, Disney!

Também estou com saudades do mar...e olha que eu não era dessas. Quando isso acabar nós vamos ao encontro dele. Quem sabe?!

Gracias, Clemê! :)

Bel disse...

no mar e na cabeleleleira leila

Amanda Machado disse...

E depois "andar de madrugada feito traça, feito barata, feito cupiiim..."

Bel disse...

já tô com roupa de ir

Amanda Machado disse...

Tenho nem roupa para esse evento!

Saudade, Clemê! :(