
lembranças que tememos se perderem, os papéis que nunca jogamos fora porque podem ser úteis um dia, os tapetes e os quadros que são substituídos porque cansamos das estampas, as cortinas cerradas nos dias tristes e escancaradas quando o sol é, de novo, necessidade. As cadeiras descascadas na varanda, o trilho da porta um pouco torto e que para abrir só as mãos da dona é que o fazem com facilidade. As xícaras que sobraram de um conjunto quase inteiro perdido em três gerações cujas barrigas também esfriaram na pia. Os livros que lemos, os que queremos ler e os que lemos e queremos ler de novo.
Ler é dentro; desenhar é fora. A arte é dentro e tem como destino o lugar de fora, para ser de um novo dentro.
Café é fora, o chá é dentro. Uísque é dentro, cerveja fora. Piscina, mar, lago, cachoeira e rio são dentro. Parque aquático, banho de mangueira e ducha na praia são fora. Esperar é solitário e dentro, ir embora é doloroso e do lado de fora, mas começa dentro.
O primeiro amor é dentro, o último eu ainda não sei. Caligrafia é dentro, erros de ortografia também são, já o correio eletrônico é fora, o corretor automático também.
Viver é fora e dentro. Demasiadas impossibilidades de deixar emergir a vida interior e muitos os limites em permitir que a exterior mergulhe dentro.
O lugar das memórias é dentro, o do instante é fora. Cantar é fora, orar é dentro. Chamar é fora, salvar com a palavra só pode ser dentro.
Fidelidade é fora, lealdade é dentro. Coragem é dentro, valentia é fora. O siso, quando dentro, nem sempre atrapalha, do lado de fora, está pronto para ser extraído. Brigadeiro de panela é dentro, enrolado com manteiga e granulado é festa de criança; e criança em festa é fora. Gestação é dentro, parir é fora, mas começa dentro. O primeiro choro é fora, muitos serão dentro e os que forem de fora poderão ser consolados. Dó é dentro, pena é fora. Luar é interior e chuva é fora. Neblina é dentro, cerração é fora.
Tempo é dentro, clima é fora. Previsão é fora, intuição é dentro. Itinerário é fora, jornada é dentro. Caminhar é dentro, correr é fora.
Perdoar é dentro e fora. Precisa partir do íntimo para, só então, encontrar alguém que está do lado de fora.
Luzes de natal se fixam do lado de dentro, os sinos, as músicas e os hinos moram do lado de fora. Festa de natal é dentro, réveillon é todo para o lado de fora e só funciona bem assim. Pular ondas à meia noite é fora, beijar um amor debaixo do azevinho é dentro. Os cães latem para fora, os gatos ronronam para dentro. As batalhas ficam do lado de fora; as mais importantes lutas acontecem dentro.
Sonhar é dentro, os desejos olham para fora. Queimar é dentro, os incêndios são fora. Ventanias são fora, furacões destroem dentro. Cercas são fora, muros são dentro.
Aviões são feitos para seguirem fora, os trens são para dentro. Minas Gerais é dentro, Rio de Janeiro é fora. Meninas e meninos são ora dentro ora fora; e tudo bem que seja assim. Esmalte vermelho é fora, unha sem esmalte é dentro. Cavalgar leões é dentro, amansar ondas é fora.
Morrer é dentro e fora, algumas vezes somente fora, porque dentro a vida apagada alcança a eternidade.
A alegria é muito antes dentro, e depois escorre incontrolável para fora. A felicidade é dentro e é contagiosa, mas muito discreta fora. As religiões são fora, as crenças são dentro. Os segredos são de dentro, as mentiras ecoam fora.
As confidências são bonitas quando ficam entre duas pessoas, os inconfidentes são enforcados em praça pública. As telas são para o mundo de fora, as pinturas são íntimas. Cachaça é fora, água que passarinho não bebe é dentro. Beija-flor é fora, pintassilgo é dentro.
Frida Kahlo é dentro e fora. Dores coloridas demais para serem trancadas dentro; por isso alcançam o fora. Monet é dentro e fora; delicado demais para não ser visto de fora.
A lua toda noite começa dentro de mim e só depois se instala na minha janela. O banho é dentro, a resistência do chuveiro é na loja de materiais elétricos; meu banho passa pelo balcão antes de ser quente e completamente meu. A nudez é fora, a sedução é dentro. A literatura é dentro, a física é fora.
Casamento é fora; companheirismo é vida interior comum. Comunhão é sacramento de fora, mas também decisão, que é dentro.
Arco-íris é fora, sol com chuva é casamento de viúva e chuva com sol, casamento de espanhol. Unicórnios não existem, pôneis não são cavalos que não cresceram. Bonsai é uma árvore com raízes sem espaço para crescerem mais e precisam de sol.
Às vezes sou para fora, mas na maior parte do tempo, sou dentro. Quando estou fora tenho medo, mas se estou dentro sinto saudade de vir para fora. Litoral é fora e eu não sei nadar; serra é dentro e cheia de lonjuras. Tango é dentro, samba é fora, se não for Paulinho da Viola.
Luto é dentro e não acaba depois da missa de sétimo dia. As cartas que não envia é dentro, as que não escreve é fora. Amar é tantas vezes dentro, mas que ondula muitas, muitas pequenas ondas até chegar fora. A paixão chega antes fora e desassossega dentro. A poesia é dentro, mas o espanto da poesia quer ir para fora.
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