quinta-feira, 20 de agosto de 2020

E quando contar desse tempo, talvez fale de um café, de um céu, mas também do medo

    E vai contar como, para os seus filhos sobre esse tempo que existiu? Vai falar da rudeza dos homens de ternos cinza e impropérios em boca murcha e cheia de saliva e raiva,  das mãos ásperas e indesejadas deles ou das coragens da sua mãe, em atravessar a cidade com você e os seus irmãos pequenos para estudar, trabalhar e levá-los ao médico, ao dentista, ao cinema e desviar dos homens de terno?
  Vai falar mais dos seus traumas antigos ou dos sonhos que não se realizaram porque deram lugar a outros? Vai chorar, ao falar de algum deles?

  Vai contar sobre as desilusões amorosas ou das amigas leais, que a salvaram quando a água não dava mais pé? Vai se lembrar dos nomes dos animais domésticos da família, os que você não escolheu, é claro. E os das primas do Rio e das professoras  de Português?
  Vai contar sobre os livros que leu ou as mentiras nas quais acreditou? Vai falar sobre as que contou e naquelas que não acreditou, mas mentiu acreditar? Vai contar o tempo em anos ou em episódios sem data, duração, sem compromisso com a sequência exata?

  E vai ainda se lembrar do cotidiano perdido e que não cabe numa lista? Dos meses em que não sentiu os seus cotovelos esbarrando em corpos desconhecidos, as bolsas dos outros no seu ombro, o sinal da escola, o hino, o cheiro de tinta e as folhas de papel voando no varal em frente à sala de artes?
  E na sua história terá o seu primeiro bom-dia fora de casa, que era ou da vizinha da frente ou a da casa quase na esquina ou do Zacarias, que aprendeu seu nome depois de muitos anos sem chamá-lo?
  Vai contar sobre os planos adiados, os desfeitos ou sobre os que nasceram no cárcere? Vai chamar cárcere ou vai achar pesado? Ao se distanciar, será mais dramática ou suave? Que tipo de narradora você tem sido? Que tipo deseja ser?
  Vai falar sobre o céu visto da sala do apartamento, do choro às sextas-feiras à noite, com pastel e vinho e da lua, sempre alta do basculante do seu banheiro ou isso tudo se apagará à luz da liberdade?

  E vai contar que se sentia menos livre por não frequentar os shoppings, as academias, os bares, os templos pós-modernos ou que se sentia liberta por não ter que ir? Vai se lembrar do medo da morte ou vai se lembrar, com lástima, do medo que não teve?
  O que vai ter para contar dos dias que não foram só seus? Vai se lembrar das crianças que perderam mais do que o ano escolar? Das raízes que se desprenderam do solo, antes da árvore atingir a idade adulta e dos frutos que não chegou a colher?
  Vai falar como deste tempo? Que foi feliz e muito triste; que foi feliz-triste? Vai se lembrar do que nasceu? Dos beijos que deu, dos que perdeu, dos que prometeu ou com os quais sonhou? Ou não vai falar sobre esse tempo nem de afetos, se não for perguntada?  

   E vai contar sobre os dois quartos de hora que deixaram de ser gastos em pensar sobre o que vestir, antes de sair, e foram dedicados a pensar sobre do que mais quer se despir? E de passar uma hora inteira, tentando se lembrar do rosto de quem nunca viu? E sobre achar que o melhor café sempre foi aquele que o pai fazia, mesmo que fosse tão cheio de açúcar?
  E vai contar que muitas verdades se desequilibraram na limitação das paredes, de que muitos afetos se tornaram mais preciosos na distância e que outros foram condenados ao esquecimento eterno? Vai se lembrar das dúvidas que se dissiparam em poeira nos móveis e dos desejos novos que foram entregues na portaria?
  Vai se lembrar de contar sobre as revoltas partilhadas, as tristezas consoladas, as alegrias discretas, do tempo em que ser alegre vem sempre acompanhada de uma condição ou contradição?

    E o que vai dizer ao andar novamente sobre a ponte, que ao não ter mais diariamente os seus olhos vigilantes para o nível do rio, em dias de chuva depois das seis da tarde,  a cidade nunca mais inundou? Vai culpar a estiagem ou os seus olhos muito zelosos que atraíam os trovões?
  Vai se lembrar de contar da saudade que sentiu de domar os seus cavalos e de soltá-los; de alimentá-los e passar a mão nas suas crinas sedosas, porque num apartamento não cabiam cavalos? E de amansar os tigres e de se sentar na chuva e de não levar tão a sério as quedas?
  Vai se lembrar que aprendeu a conduzir sozinha as suas ausências, depois que o instrutor também se trancou em casa?

  Vai contar que se livrou de um cinzeiro que estava no aparador da sala há mais de três décadas, numa casa de não-fumantes, que não recebe visitas que fumam? E que apagou vestígios materiais de memórias ruins, esperando que um dia elas saiam para tomar um ar e você as tranque do lado de fora?
  Porque quando contar desse tempo, vai ser outra, noutro tempo. Mas talvez ainda possa falar do café preferido, do céu mais bonito e do medo, que sempre aparece numa linha, um pouco antes da coragem.





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